quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 6)

Antes de procurarmos saber como este caminho ou como esta indicação se confirma nos diferentes níveis do poema, já nos damos conta que, pelas diversas leituras efetuadas, o poema em sua totalidade possui uma organização bem delimitada. Com isto, compreendemos, mais uma vez, que a maior unidade de sentido do poema é ele mesmo. E “Serpente Emplumada” é poema extremamente descritivo (recurso muito mais narrativo do que lírico) por focalizar e descrever os blocos poéticos: o entrelaçamento do “eu” lírico ou sujeito da enunciação (ora implícito, ora explícito) e do sujeito do enunciado (que é aquele do qual fala o discurso) compõe, estes últimos como figuras centrais, a cena, conferindo dinamicidade à mesma e permitindo dividir o poema em blocos como já foi e está sendo analisado. Estes (blocos) são as variações que o desenvolvimento do tema pode assumir, estando “Serpente Emplumada” dividida em vários blocos.

Assim, cumpre-se, no poema, um tempo imanente à palavra, não condicionado ao ritmo do calendário, da duração interior e do mito. Dotado de padrão próprio, o tempo da poesia se ordena como o tempo da enunciação, no ato de produzir os sons das palavras, numa continuidade inapreensível por qualquer instrumento mecânico. – p 150 A Criação Literária de Massaud Moisés.

O entendimento desse aspecto do fenômeno poético avançará se recordarmos que a palavra poética estrutura-se com base numa tensão múltipla, de natureza rítmica, emotiva e conceptual ou semântica. Aqueles expedientes versificatórios servem à compreensão dessa tríplice tensão, mas não a desencadeiam. E é essa tensão que assinala a presença no texto, de um tempo sui generis, ambíguo por natureza, que transcorre no circuito das palavras. Tudo se passa como se as três outras dimensões do tempo se fundissem numa só: a dimensão emocional, a dimensão semântica e a dimensão rítmica, entrelaçadas como uma duração dialética.

[Gaston Bachelard, La Dialectique de la Durée. Paris, P.U.F., 1963, pp 112 e suas. Do livro A Criação Literária de Massaud Moisés.]

Se o tempo da poesia se ordena como o tempo da enunciação, no ato de produzir os sons das palavras, numa continuidade inapreensível, dir-se-ia que este tempo (da poesia) define-se pelo aqui e o agora (momento presente da composição do poema), numa tensão dialética, como se pode constatar nos versos que constituem o processo de descrição exata do real:

 

“Um fruto / Caiu verdinho / Da árvore. /

Não amadureceu. / Permaneceu igual /

Para sempre / No espaço / E no tempo /

Do poema / (Já que muitas coisas / Acontecem /

Dentro e fora / Do poema). / A média estação... // 

Todos os dias / Em pelos / De pernas e braços / Unhas / E células mortas / Vamo-nos aos poucos / Para o nada.

  [...]

Isso é morrer?”

 

Se a palavra é o habitat do ser, a palavra poética é a sua morada eleita, porque acima das contingências, a da História, a da Consciência e a do Mito: “a poesia é a instauração do ser com a palavra”.

[Heidegger, op. cit., p.107 – A Criação Literária de Massaud Moisés]

Ao conceber a poesia como “a palavra no tempo”, Antônio Machado adiciona-lhe novas luzes, porquanto “a palavra no tempo” implica que a palavra se desgarra de sua forma gráfica para assumir-se no tempo o que equivale a supor que a palavra não remete para o tempo, mas nele se incorpora, com ele se identifica. Palavra que se metamorfoseia em tempo, isto é, noutros termos a palavra se cristaliza num tempo próprio, uma quarta dimensão – para estabelecer analogia entre a sua e a nossa ideia.

 

“Por um instante a humana tribo habita

Aquele chão

Aquele ...

.......................................................

.......................................................

Põe-se em fuga

Outra vez.

 

O pó da estrada fica

Para além”

 

E a fixação dos diversos fatos dispostos em um mesmo plano nas estrofes acima, se verifica não só pelo emprego do presente do indicativo – habita, finca, erguem(-se), torna(-se), é, derribam(-se), põe(-se), fica – que já é por si um tempo pictórico, portanto estático, mas pela utilização de significados verbais que muito se aproximam de significados nominais, a ponto de com eles se confundirem: lembrança ð lembrar; habita ð habitante; terra ð terrear etc.

A atualização da significação nominal implica um conteúdo formal. A palavra “lembrança”, por exemplo, refere-se a um sentimento que vamos especificar aqui como sendo sentimento de saudade e, ainda, conota certos sentimentos a ele inerentes, como tristeza, alegria, amor, além de outros, como o valor e a raridade.

E a possibilidade de tal explicitação prova que o conteúdo formal realmente existe na estrutura nominal em que estão implícitos vários aspectos formais. São desse tipo vocábulos como humana, terra, estaca, estrada. Pois foi exatamente o que procuramos evidenciar, oferecendo como exemplo a palavra “lembrança”.

Neste ponto, cremos poder lembrar um princípio da linguagem estética, em função do que ficou exposto: quanto mais o conteúdo formal estiver implícito em palavra de significação nominal, maior será o seu valor expressivo. – p. 91 de Fenomenologia da Obra Literária de Maria Luiza Ramos - 3ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária - 1974.

Mais uma vez podemos extrair outro princípio da linguagem estética: ao poema não interessa, ou interessa de maneira subsidiária, a caracterização dos nomes, ou das expressões, desde que se lhes reconheça uma posição existencial.

Não que a realidade seja desprovida de importância, mas porque a arte não se confunde com o real. É sabido, a função primordial da arte é criar uma supra-realidade, numa objetualidade que, proveniente do objeto, dele se distingue pela natureza estética, de que, participam outros valores, muitos deles de ordem subjetiva.

 

“Parte disso é mistério”.

 

Uma das características universais da arte é o comportamento repetitivo. No que respeita à linguagem poética, a repetição é de partes inteiras – o refrão; de palavras iniciais, ou finais; de sílabas completas em efeito de rima, ou repetição de determinados fonemas idênticos ou afins, em casos de aliteração, assonância e consonância. Pois esse comportamento repetitivo se encontra no poema em pauta. Constitui uma das características do modo de falar do poeta. De bonito efeito, é quando palavra puxa palavra pela simples semelhança:

 

        “Mas baila com o fogo a gente

        A gente que é sombra e dança

        A gente que é nômade e sonho

        A gente que não sabe sono

        A gente que é sopro e vida

        A gente que é triste e samba.”

 

Muito expressivo é o exemplo indicado em que, dentre seis versos, usa o poeta seis vezes o nome “gente”, repetindo por seis vezes uma mesma palavra com grande funcionalidade rítmica.

A repetição da fricativa é aqui de grande efeito estilístico. O gosto pelas palavras repetidas se percebe em algumas outras construções redundantes, como:

 

O povo / Acolhe os dons da eleição. / Parte /

Em duas partes / O deserto / O mundo. Pisa /

Chãos inteiros... / Pisa / A flor. / Faz perfume. /

Alarga a tenda / A cada passo / E passa ...

 

CONTINUA...


terça-feira, 29 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 5)

Deixando-nos conduzir pela linguagem do poema, e ao mesmo tempo, deixando de lado noções, explicações, convenções, encontramos já no meio da análise uma parte que trata da criação, um sentido de abertura, de liberação que se confirma na totalidade do mesmo. Assim, neste bloco em análise, os versos

 

“Os filhos da grande mãe se ajuntaram

Para acender o fogo

E ascender graças”

 

indicam um movimento de mudança, de abertura para um novo grupo de imagens;

 

Assim, “Sete cavalos em pastos

               ... a pastar”

 

encarna o máximo de presença da linguagem no espaço mínimo da língua.

 

Referindo-se à “grande mãe”, quem seria esta grande mãe? Seria no meu sentir, no meu entender:

 

                “A Terra”.

 

A Terra com toda a sua exuberância: a flora, a fauna, os rios, os lagos, os oceanos, os mares, o céu, os astros, o vento...

Há, ainda, a presença de um movimento de transformação, de mudança de alguma coisa para alguma coisa:

“o tempo para. / A ... lua / Volta (...) / Atravessa cheia o orbe / Desce / Vai passear”         

......................................

......................................

......................................

......................................

        “Depois / Sopra nos montes (...) // Ah! vem dos longes inavidos!... / Vem duma terra estranha! / Oigalê! // Sibila o vento... / A minha alma se levanta já cigana / e dança!” etc. etc.

Estes movimentos que indicam mudança de um estado a outro, ou abertura ou liberação (exemplos anteriores) já confirmam um caminho de compreensão do poema, para que, com muita atenção e força, se chegue ao final da leitura do poema.

Descobrimos, também, que há toda uma área de significação, de purificação da linguagem (grifo nosso).

Como se vê, o termo “inavidos”... é um neologismo e/ou, etimologicamente, uma palavra composta por derivação prefixal = prefixo “in” + ávido(?) (adjetivo) = ansioso, sôfrego, voraz, sedento, sequioso.

Levados ainda pela nossa imaginação, acabaríamos fazendo cogitações acerca da vida do autor, já que no poema lírico há sempre um eu que se expressa, advindo daí o subjetivismo atribuído a este tipo de composição. Nós confundiríamos facilmente o “eu” lírico com o “eu” autobiográfico. Por falta de experiência com a criação, nós esqueceríamos que o fato literário possui um universo fictício, onde os elementos da realidade concreta entram em tensão com o imaginário, para criar uma nova realidade, atrás da qual o autor desaparece.

        “Oigalê”... é uma expressão interjetiva de admiração, espanto, diante do que o poeta vê, visualiza no espaço da cena, pertinente a todo o poema.

A linguagem é o mais concentrado modo de ser da realidade. Na linguagem, o Real se mostra em si mesmo com plenitude de liberdade. (CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Fundamentos teóricos da poética; apontamentos de aula de um curso de igual nome na Faculdade de Letras da UFRJ, 2º semestre, 1971. Do livro Teoria Literária – Eduardo Portella e outros.)

E na paisagem do Real o homem ocupa um lugar privilegiado, porque no dizer de Heidegger: “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias”. Nessa perspectiva “pensar a linguagem é pensar o homem”. Ela não é algo externo ao homem, é o lugar inevitável do acontecimento existencial ²² e

 

                     “existir plenamente é empreender

                      um movimento de liberdade. É o

                      que faz o poeta, é o que faz o homem.

                      O poeta o faz poeticamente,

                      assistido pela ação reveladora da linguagem”²³

 

[22. HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo Trad. Emmanuel Carneiro Leão. RJ, Tempo Brasileiro, 1967. p 21

23. Ibidem, p 78]

 

A dinâmica interior/exterior e toda a área de movimento se organizam, também, sintaticamente. A pontuação exerce função fundamental na marcação do ritmo. As reticências não indicam a interrupção abrupta e conclusiva da sequência frasal como ocorre com o sinal de ponto. São pausas cheias de sugestões que não indicam o fim, mas o prolongamento do sentido ou dos sentidos do verso.

        Os versos............. “Com cheiro verde de mato / E mistério... // Ah! vem dos longes inavidos!... ............ Oigalê!... // Sibila o vento”... citados possuem uma cadência de ir e de voltar que as reticências complementam. Estas, enquanto estabelecem uma pausa entre os dois tipos de movimento, nada concluem, antes dão continuidade ao movimento, mantendo o tempo do verso. A pausa das reticências não é propriamente uma parada, mas um alongamento, uma duração.

        No verso: “Ah! vem dos longes inavidos!...” não só o fonema /a/ de “inavidos” se perpetua fônica e semanticamente, o segmento posterior também é aguardado, “Vem duma terra estranha!”

Estas últimas reticências indicam a repetição do processo que não se conclui nunca. As reticências fazem o ritmo e o sentido ultrapassarem a linha do verso. Enquanto o primeiro segmento do verso é prolongado, o segundo é já sugerido, formando-se assim uma cadeia, tendo as reticências como ligação. Estas, ao mesmo tempo em que interrompem a frase ou o sintagma, também o projetam.

As reticências revelam que há ainda algo a ser dito. Os versos, exatamente, que irão se encadear com a estrofe seguinte:

        “Sibila o vento...” e “O vento varreu” são inexprimíveis, são um gesto de impotência, uma renúncia a algo que é excessivamente íntimo.

        Isso que nos surpreende, às vezes em Fabiano como por demais rebuscado, é o que constitui a essência do lírico.

Patrioticamente, o poeta assim se expressa:

        “O vento varreu ......... / Mais que o vento que beija / A bandeira nacional / Na Praça dos Três Poderes / Em Brasília / Mais que o vento da crítica / Literária do meu país... etc.

Eis aí uma lição de civilidade!


CONTINUA...


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 4)

          Ilha.  Do quinto bloco do poema.

O bloco Ilha do grande poema “Serpente Emplumada” opera um desdobramento do conteúdo significativo espacial do substantivo “Noite”, encabeçando todas as estrofes que compõem este bloco.

A palavra “Noite” é mencionada no início da estrofe, onze vezes, sem contabilizar as noites no interior das estrofes. É, portanto, um espaço muito significativo para o conteúdo programático do poema.

“Noite estrelada” – terceiro verso da primeira estrofe do bloco Ilha – é uma pintura de Vincent Van Gogh que se tornou uma noite maior a partir do seu quadro pintado em 1889, num asilo do sul da França. É uma obra pós-impressionista que estimulou (impressionou) os corações que viviam nos hospícios e/ou “coração humano”.

Todas as outras noites são um desdobramento com suas respectivas nuances e características. 

Ora a noite é igual como a de lá, a daqui e de “Agora”que corta a noite, parte a noite

“Em setecentas outras noites...”

Ora a noite é como o ladrão ou amante que rouba o meu dia (do eu-poético) sem avisar;

Ora a noite é um sentimento além de “Exílios provençais...”

Ora a noite ultrapassa a linha do Equador e atinge até o esplendor de uma noite em Xanadu (uma noite esplendorosa, magnífica, suntuosa).

E mais, ora a noite atinge o âmago da alma como uma noite em Tula (âmago, íntimo, alma).

Ora a noite é alta... alta... muito alta! É como se (de cima se pudesse ver tudo que há no mundo até mesmo “as esperanças / Acesas. // Ainda mais alta...”

A repetição do nome “Noite” vinte seis vezes comprova que o discurso ao invés de se desenvolver linearmente, retorna sempre ao mesmo ponto.

Na perspectiva lógica, ou a repetição esclarece a mensagem ou é redundante, mas neste caso, acrescentando uma nova informação.

O discurso prossegue, recua e se obscurece, resultando imprevisível, original e ambíguo.

Ao analisarmos este fragmento, denominado “Noite” do grande poema “Serpente Emplumada”, poríamos em relevo a preocupação com o “sentimento do mundo” que o habita. O eu-poético descreve, com olhos de lince, o subjetivismo da cena, com todos os seus momentos, em que, a par da liricização do seu estilo, obedece a um ritmo complexo, que depende ao mesmo tempo de agrupamentos lógicos, de grupos tônicos, do numerismo silábico, de vários efeitos fônicos e rítmicos. – p 133.

Verifiquemos:

1)   Agrupamento lógico – “Cruzeiro do Sul a luzir / Gigante de braços para o amplexo abertos”.

Há no poema muitos outros agrupamentos lógicos.                 

2)   Grupos tônicos – “Dos pobres e mendigos / Dos moradores de rua / Das crianças pedintes / Em todos os semáforos do mundo”.

3)   Do numerismo silábico – “Em face da violência / Em face da impunidade”. “Em face de um céu tão grande”.

4)   Vários efeitos tônicos e rítmicos – “Da corrupção do meu país / De políticos / De milhares / De cristão indiferentes”.

...............................

...............................

“Indiferente ou

Talvez – quem sabe –

De algum misterioso modo

A redimir o mundo

A redimir-nos da loucura

Dos hospitais e hospícios

Das favelas

Das intermináveis filas do SUS

Da miséria”...


O eu-poético pintou um quadro, não como quadro estrelado pintado por Van Gogh. Este pontilhado de brilho intenso como o das estrelas; aquele também pontilhado de uma realidade de aspectos e nuances (momentos e espaços) que se des-realizaram, transformando-se num real poético.

Se a poesia é a linguagem do sentimento, conforme o que preconiza Croce, que acolheu a postulação aristotélica e repudiava a distinção formal, poder-se-ia confirmar que este bloco é a percepção do “sentimento do mundo”, não como meramente emoção, mas percepção de emoções, impressões e sensações (sentimentos). – p. 121.

A poesia deve dar-nos a impressão (ainda que sua impressão possa ser enganosa) de que, através de meras palavras, nos comunica um conhecimento de índole muito especial: o conhecimento de um conteúdo psíquico tal como é na vida real. Ou seja, de um conteúdo psíquico que, na vida real se oferece como algo individual, como um todo particular, síntese intuitiva, única da conceptual – sensorial – afetiva. Cf. Carlos Bousoño, Op. cit. vol. I pp. 19-20.

O poeta comunica ao leitor o seu conhecimento das coisas.

O que afeta a essência do poético não é, pelo visto, que haja comunicação, mas que pareça que haja, que se nos produza a ilusão de que haja. – p.122

Neste bloco, o poeta procurou com efeito, comunicar de verdade a alguém, por meio de simples palavras, um conteúdo anímico e imaginário, mas real, muito real; parece-me até que estamos diante deste quadro (o mundo com todas as suas especificações) para se evidenciar o que, na realidade acontece.

À guisa de comprovação, vejamos:

 

.....................................................

“Dos meninos e meninas

Abusados na infância

Da fome

Em minha nação de ricos

Da dor de existir pequeno

Em face de um céu tão grande

E surdo”

 

Se a ilusão de haver-se dado comunicação entre o poeta e o leitor é persistente, o problema continua de pé. A partir de então, verifica-se que outras perplexidades se erguem à nossa frente.

O eu poético faz uma pergunta:

 

“É carnaval?”

 

Não se sente uma resposta plausível, mas por tudo que acontece e vejo neste poema, é lícito inferir que sim. Um carnaval, sim, mas do real estético. 

Porém, nas entrelinhas pressente-se muito sutilmente um significado que se pode atribuir ao termo “Carnaval”. Diante do que se esboçou anteriormente, poder-se-ia dizer, metamorfoseando-se em: isto é um carnaval!!!

São conjecturas, que não sei se verdadeiras, exatas, reais e se caberiam neste contexto.

Num autêntico jogo de espelhos, o eu do poeta contempla-se num texto que, apesar de edificado com a sua matéria orgânica, parece fruto de um demiurgo, cuja exclusiva missão fosse revelar o “eu do poeta” a si próprio.

Portanto, o “eu do poeta” se confessa por meio do “eu lírico”, cuja natureza vale à pena examinar de perto:

 

    “Quando desceu a noite / Cobrindo os mundos / Para além de nossa terra e mar antigo” (grifos nossos)

 

Ainda mais verossímil, pode-se constatar:

 

(“A noite mais linda

É a que se pode ver

Em plenilúnios

Da lagoa da Pampulha).”

 

A obra da recriação (o poema) estaria para a obra da criação (o mundo) assim como o poeta estaria para o demiurgo (poeta) ou o criador do Universo (Deus). – p. 106  A Criação Literária – Poesia de Massaud Moisés.

Quando lemos “Serpente Emplumada” pela primeira vez, confrontamo-nos com um acúmulo de imagens e precisamos lê-lo, muitas vezes, a fim de encontrarmos elementos que, pela sua constância, possam nos indicar uma categoria de leitura.

 

CONTINUA...


sábado, 26 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 3)


“Amor...

Palavra até então adormecida no poema.”

 

Vejamos um exemplo onde a definição (no caso, quase sempre imagética) amplifica o tema:

AMOR

Cremos fixar o imaginário de um quadro, de um poema, de um romance.

As imagens tênues do “AMOR” são emitidas pelos objetos descritos no poema em análise. O objeto dá-se, aparece, abre-se à visão, entrega-se a nós enquanto aparência: esta é a imago primordial que temos dele. Veja:


Pedra.

Dura pedra.

Ingrata

Pedra

Pedra

Grata.

Pedra.

Broca.

Pedra.


“E a desfaçatez de um poema / (Uivo)

Que se contorce / Para nascer”.

 

Toda imagem pode fascinar como uma aparição capaz de perseguir.

Essa imagem do “amor” é tão dura, mas tão real que nos parece fascinar. No poema o “Amor” é pedra, dura pedra, broca, rocha.

“Dobra-se a rocha. / Fecha-se a porta. / O que ficou ficou. / O que se sabe / É já antigo / Apenas lembra-se ......

Embora antigo, é conveniente lembrar “Como algo novo”.

Algo novo que precisa se saber “Do que ainda não se disse / Da pedra”.

O jogo que o poeta faz da pedra com o amor é que torna o Amor um sentimento abissal.

O resto da estrofe diz tudo sobre o Amor abissal. Num sentido figurado e misterioso, enigmático, como o Amor, na realidade, que por mais que se tente definir e sentir, definitivamente é impossível.

(“Morreria”)

“Conversa comprida é o amor!” (Fim do terceiro bloco)

A imagem é transformação de forças instintivas; estas, por sua vez, respondem, em última instância, pela sua gênese. Nunca é demais insistir: para Freud, força e sentido alimentam-se no inconsciente.

Li e reli o poema à procura de um sentido intelectual, mas só consigo “Sentir” um reino sensível de correspondências onde latejam os ritmos do inconsciente.

Em carta à Charles Morice, Mallarmé é categórico. “O canto (poema) jorra de uma fonte inata, anterior a um conceito, tão puramente que reflete, de fora mil ritmos de imagem”. O quarto bloco do poema poder-se-ia intitular de “Constelação”. Mas o que é uma constelação?

Constelação é um grupo de estrelas. Por extensão é um grupo de pessoas notáveis pela inteligência, cultura, etc., ou, que para nós representam muito sobre o aspecto afetivo.

Se é um grupo de pessoas, cada uma delas se define pelas suas ações.

Para não nos alongarmos numa análise por demais exaustiva, deixamos aqui de considerar a reprodução literal, aos estratos das unidades de significação e nos deteremos na decomposição do texto. Assim, no desenvolvimento do texto.

Poder-se-ia dividir essa grande estrofe em blocos menores de acordo com o assunto de cada um deles.

Primeiro bloco (menor) do quarto bloco (maior)

Referência: “O segredo / Gritado / Pelas imensidões cósmicas / Do mar do céu.”

Síntese: “Admirado por Kant”, filósofo alemão responsável pela fundamentação da metafísica dos costumes.

Primeiro personagem referenciado no poema.  

Segundo bloco (menor) do quarto bloco (maior)

Reflexão do eu-poético sobre ele próprio. Ele faz alusão ao céu estrelado, à lei moral e à “imensidão escura / De luz” – ideias contrastantes.

Síntese: coração perturbado. Efeito da constelação sobre o poeta.

Terceiro bloco (menor)

Se tudo é vão e efêmero, tudo passa até mesmo “A inteligência / De Blaise Pascal / (...) / E de milhares de outros gênios / Apagados pelo tempo”.

Síntese: Inconstância e fragilidade das coisas (Motivo).

Blaise Pascal – matemático, físico, filósofo e teólogo católico francês. Contribuiu para o estudo dos fluidos.

Segunda estrofe e/ou quarto bloco.

Focalizaremos os seguintes elementos:

“sabedoria dos pequenos / Maior que a dos filósofos”... Extasiados com a beleza sem nome (do céu), o céu simplesmente como ele o é. 

Céu degredo ð céu do exílio

Céu das almas dos homens...... duelo entre os dois (céus)

Filhos de Eva

Adão............................. Degredados (exilados)


Céu cintilante ð é o céu brilhante, mas nostálgico.

ð Brilho intenso ð de soluços, lágrimas acesas

                                nuvens ð efêmeras


No plano do desenvolvimento do texto, pela sequência das ideias acessórias e suas respectivas centrais chegamos à determinação do assunto e do tema.

Destarte, reconhecemos:

Assunto: mudança do estado de espírito do poeta.

                (ideia central)

Tema: transformação do poeta – a transformação se opera face à inexorável mudança do tempo. Veja como o céu se apresenta.

 

CONTINUA...

 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 2)

    Como introdução ao segundo bloco poético do grande poema “Serpente Emplumada”, o poeta em análise trabalha a frase (o verso) como quem quer dar voz e tom justos a uma experiência em contraste com a convenção dominante. Ele reatualizou a sintaxe oral e deu um novo travo de sinceridade pungente ou irônico. Quer mais comovente e estranho do que:

“Quem decifrará o grão poema? / Grão de areia / Das praias do mar... / Poeira de aquáticas estrelas... / Gota de orvalho transportada / Da rosa / À imensidão do oceano”

“Pacífico”

Esta estrofe constitui-se num “estranhamento” conforme os formalistas russos.

A quase falta de pontuação ou simplesmente as reticências e a interrogação imprimem, na estrofe, um ritmo próprio que vai de encontro com a sintaxe tradicional. Daí porque a reatualização da sintaxe oral.

Poder-se-ia comparar o poema, este poema denso, profundo, com uma imaginação indizível, com o “grão poema? / Grão de areia (...) / Gota de orvalho transportada / Da rosa / À imensidão do oceano // Pacífico”.

Estes versos são formas poéticas corporificadas com suas qualidades visíveis que se transformaram em ações (objetos próprios da poesia).

Em suma, interessa-nos conhecer o poético realizado no texto, o poético entendido como o signo ou categoria que designa uma experiência ou aquilo que aparece à consciência – ou um modo de ser da inteligência e sensibilidade (de um criador de arte: o poeta), como se encontra materializado nas páginas escritas.

Do final do primeiro bloco – “Ofídia Verdade” – para o segundo bloco, há uma introdução para dar início ao segundo, com uma pergunta. Quem? Em suspense. À cata de uma resposta. Quem teria a ousadia de respondê-la?

Com o verso “Terra”, tem início o segundo bloco do poema. Antes, porém há uma definição de terra: décima segunda estrofe:

 

“Terra / Pupila azul / Que gira, gira... /

.......................... /........................../..........................

“Gira”.

 

Nas décima segunda, décima terceira e décima quarta estabelece-se um paralelo entre a Terra e seus movimentos: rotação e translação.

Tudo gira – “Como girassóis do dia” / Gira

................................/.................................

“Como girassóis da noite”

.....................................................

“Como em verso lusitano / Este outrora dito comboio de cordas / Que se chama coração”.

 

O poeta faz menção aos dois últimos versos do poema Autopsicografia de Fernando Pessoa. “O coração é descrito como um comboio (trem) de cordas, que gira e que tem a função de distrair ou divertir a razão: “E assim nas calhas das cordas / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de cordas / Que se chama coração”. (Fernando Pessoa)

Coração – o centro de toda emoção, o ventre do intelecto e da razão, que define o entendimento e a percepção.

E finalmente continua o girar como os movimentos da Terra: rotação e translação já citados anteriormente.

Gira

 

“Como os ponteiros de um relógio” /......................

“Como o pião da infância” /................................

“Como um carrossel de sonhos” /.........................

“Gira”

“Como o gargalo da sábia coruja”.

 

Seguindo o curso normal da leitura do poema “Serpente Emplumada” do livro Girassóis Noturnos, ainda no segundo bloco, privilegiando o conceito de ritmo que afirma que o ritmo é produzido pela repetição de um mesmo elemento sonoro (acento tônico, consoante, vogal, sílaba, etc.) a intervalos regulares, ou ainda o conceito básico de ritmo que é o movimento de um objeto no curso do tempo, eu diria que o bloco poético em pauta é rico em sugestões rítmicas. Não só pela repetição das palavras “gira, gira”... sete vezes e Giram... duas vezes – elo entre as estrofes do 2º bloco, mas também pela repetição da palavra: “Como” – sete vezes.

Não há apenas o parentesco sonoro, mas ainda o da construção:

1)  Sintaticamente: a pontuação (quase inexistente), um ponto final no fim do bloco, cuja leitura se faz de uma só vez, num só fôlego, produzindo um canto sonoro ritmado.

2) Semanticamente: a comparação (o “como”) aproxima as estrofes, estabelecendo a relação do movimento da terra com os objetos e as ações do poema, exemplificando: a terra gira / gira / Como as crianças quando brincam. Gira como girassóis do dia....... Como girassóis da noite.

Além das massas sonoras em que se constitui cada poema, o ritmo se caracteriza por ser um verso emotivo e semântico autônomo. Veja, por exemplo, a última estrofe do segundo bloco; em que a fusão entre a emotividade, a musicalidade e a carga semântica particulariza os versos desta última estrofe. É tão perfeito o gira gira do gargalo da sábia coruja – “este alado ser” – que se pode inferir.

De onde a ilação de que o ritmo poético consiste na sucessão de unidades melódico-emotivo-semânticas, movendo-se na linha do tempo, numa continuidade que gera a expectativa na sensibilidade e na inteligência do leitor.

A descrição deste alado ser (coruja) é algo de fantástico e surpreendente porque perfeita, gerando a dita expectativa no leitor já anunciada. Só quem já conseguiu visualizar e acompanhar noturnamente a coruja pode confirmar tais características do bicho.


CONTINUA...