sábado, 18 de agosto de 2018

As trilhas que meus pés calcam


Fotografia de Rakesh Rocky


Em caso de dúvidas, retome os passos de Matsuo Bashô, mas calcando o barro antes que endureça. Desde que o velho mestre iniciou a sua caminhada, nunca mais parou, atravessando a Grande Muralha da China, o deserto de Gobi, depois a Praça Vermelha, até chegar a Paris. Também uma nau de imigrantes japoneses que traziam em seus baús, nos diários surrados, versos de esperança nos cafezais paulistas, por aqui aportou. Vários os caminhos, com pegadas em direções que apontavam as terras do Ocidente.
O haicai que aprendi a compor faz parte desta história de imigrantes, passando por Masaoka Shiki, Kyoshi Takahama, Nenpuku Sato e H. Masuda Goga. Os dois últimos, imigrantes sonhadores, que mancharam a camisa branca com a terra vermelha do interior de São Paulo. Aqui instalados, não só cultivaram a terra, mas também plantaram as sementes do haicai, que chamavam de haiku. Não importa a designação, a composição é a mesma.
A crença de que o haicai poderia ser composto, de modo tradicional, em língua portuguesa, se deve muito à insistência de H. Masuda Goga junto aos seus discípulos. Estamos na terceira geração de haicaístas que compõem desta forma. Utiliza-se na composição o termo caro do kigo*, não sendo substituído por nenhum equivalente em português.
Da atual geração, que muito tem contribuído para valorizar esta arte, cito Antonio Fabiano, que no ensejo publica a obra Aragem. Tenho, de alguma forma, acompanhado a sua produção na imprensa local. Não se trata de elogiar o seu trabalho, que em Aragem superou as minhas expectativas. De fato, Fabiano tem se esforçado em suas pesquisas no campo da linguagem e da observação.
Um haicai me chamou a atenção:

casebre à venda –
um lírio branco a pender
no caos da cidade

Sendo o lírio branco o kigo deste, o contraste está justamente no caos da cidade. O observador da natureza mantém um olhar atento aos acontecimentos mais fúteis que, em sua simplicidade, podem acabar sendo relegados a algo sem importância. O haicaísta não julga, apenas contempla e, assim, cessa qualquer intervenção intelectual. Quando isso acontece, forma-se uma amálgama entre o haicaísta e o assunto da composição. Não há mais ego. Nem interessa quem é o autor. O trabalho torna-se algo a ser compartilhado com os leitores, cada um destes conforme a sua sensibilidade.
A cidade, comumente vista como espaço do caos, pode ser também o lugar em que é possível perceber algo tão singelo como o lírio branco. Mas, justamente onde existe o caos, o haicai está presente em sua forma visceral e latente. Enganam-se aqueles que pensam que o caos é uma produção da cultura e, inversamente, a natureza o espaço da harmonia. O caos se presencia de igual maneira na natureza física, na confusão das cores durante a florada, no nascimento e na morte, no crescimento e na destruição.

silêncio abissal –
no horizonte em chamas
branca flor de cacto

Levando-se em consideração que o caos é uma realidade que nos cerca, o cuidado excessivo na composição do haicai, por uma questão ideológica, acaba por impor uma ordem no mundo através da linguagem e deturpa aquilo que se apresenta de maneira própria. Mas o haicai tem um viés torto. Nesse caso, nada melhor do que mostrar a natureza em sua face verdadeira:

anjo e trombeta
em mármore esculpidos –
os brancos jasmins

Em atitude contemplativa compomos os haicais, sem acabar com o ego, mas deixando-o suspenso, evitando sua interferência naquilo que percebemos com os nossos sentidos. Para os iniciantes, nem sempre isso é possível, pois a mente não se acalma, luta para se impor, dar a sua opinião, mostrar que existe e necessita sobreviver. Pode ser diferente disto:

carrilhão silente –
noite vazada de estrelas
no pátio do claustro

O silêncio é uma grande dádiva, pois a natureza se apresenta de maneira inteira, às vezes assustadora, também engraçada, contraditória, ou apenas natureza:

trens de Santiago –
nos cimos da cordilheira
só silêncio e neve

Nestes anos de pesquisa e vivência no haicai, alguma coisa devo ter aprendido. Quando o mestre partiu, duas possibilidades se abriram: penetrar fundo ou abandoná-lo. Nesta caminhada solitária, errando passos, acertando outros, a argila calcada secou. Ficou mais fácil caminhar, pois os passos estavam marcados onde pisar. Tenho grande fé em Antonio Fabiano, que continue nesta empreitada de caminhar, nas trilhas de Matsuo Bashô. Enquanto houver caminhantes, o haicai continuará florescendo.
Mais uma reflexão: a natureza a que se refere a composição do haicai está diante do poeta como dentro dele. Digo, a Natureza como o universo todo, a lua e as nuvens, o vento e o sol, o pé de mexerica e a flor de ipê, as manifestações humanas, o homem e o próprio haicaísta. Não imagino o haicaísta separado da natureza, bem como a natureza do próprio haicaísta distante de sua composição. 
Se a leitura de uma coletânea de haicais tem a capacidade de mudar a concepção do mundo, acho que alguma coisa mudou também em mim. Mais do que qualquer euforia, trouxe-me um imenso silêncio. Um silêncio de eternidade.



                Francisco Handa
Doutor em História, monge budista do Templo Busshinji e um dos fundadores do Grêmio Haicai Ipê.

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[*] Este vocábulo foi adotado pelos nossos literatos e continua sendo utilizado no Brasil com a mesma função que exerce em sua origem: palavra da estação, eixo de sustentação do haicai tradicional.