quinta-feira, 29 de novembro de 2018

LAMPEDUSA


os corpos um a um
são postos lado a lado...

vão.

são restos de sonhos
réstias de luz.

– a esperança não se afogou?

no chão da estrada
(embora alto mar)
caminho onde outrora
um barco passou
jaz morto o que vinha
em busca de um lar.

e seu coração
de outrora bater
já fora do peito
vai longe
do porto
sonhado e desfeito
em sais e silêncios
de nunca chegar


ANTONIO FABIANO

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Publicado pela primeira vez este ano, na ANTOLOGIA LITERÁRIA CARMELITANA da Ordem dos Carmelitas Descalços Seculares. Edição comemorativa do primeiro centenário da OCDS no Brasil (1918-2018). ORGANIZADOR: Carlos Vargas, OCDS.
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Lampedusa é uma ilha italiana do arquipélago das Ilhas Pelágias, no Mar Mediterrâneo. Sua população dedica-se basicamente à agricultura e à pesca. Com frequência, a ilha tem sido local de desembarque de imigrantes clandestinos, provenientes do norte da África e regiões de conflito, alimentados pelo sonho de uma vida melhor na Europa. Este fenômeno tornou-se ainda mais acentuado nos últimos tempos, de modo que a ilha passou a ser foco de uma crise humanitária. Muitos imigrantes, porém, sequer conseguem chegar à ilha de Lampedusa. Por causa das condições precárias das embarcações clandestinas, milhares de pessoas morrem náufragas no caminho. 

sábado, 29 de setembro de 2018

TUDO ISTO É FADO

         (...) 
Almas vencidas
Noites perdidas
Sombras bizarras
Na Mouraria
Canta um rufia
Choram guitarras
Amor ciúme
Cinzas e lume
Dor e pecado
Tudo isto existe
Tudo isto é triste
Tudo isto é Fado

(Aníbal Nazaré / F. Carvalho)
Repertório de Amália Rodrigues

sábado, 18 de agosto de 2018

As trilhas que meus pés calcam


Fotografia de Rakesh Rocky


Em caso de dúvidas, retome os passos de Matsuo Bashô, mas calcando o barro antes que endureça. Desde que o velho mestre iniciou a sua caminhada, nunca mais parou, atravessando a Grande Muralha da China, o deserto de Gobi, depois a Praça Vermelha, até chegar a Paris. Também uma nau de imigrantes japoneses que traziam em seus baús, nos diários surrados, versos de esperança nos cafezais paulistas, por aqui aportou. Vários os caminhos, com pegadas em direções que apontavam as terras do Ocidente.
O haicai que aprendi a compor faz parte desta história de imigrantes, passando por Masaoka Shiki, Kyoshi Takahama, Nenpuku Sato e H. Masuda Goga. Os dois últimos, imigrantes sonhadores, que mancharam a camisa branca com a terra vermelha do interior de São Paulo. Aqui instalados, não só cultivaram a terra, mas também plantaram as sementes do haicai, que chamavam de haiku. Não importa a designação, a composição é a mesma.
A crença de que o haicai poderia ser composto, de modo tradicional, em língua portuguesa, se deve muito à insistência de H. Masuda Goga junto aos seus discípulos. Estamos na terceira geração de haicaístas que compõem desta forma. Utiliza-se na composição o termo caro do kigo*, não sendo substituído por nenhum equivalente em português.
Da atual geração, que muito tem contribuído para valorizar esta arte, cito Antonio Fabiano, que no ensejo publica a obra Aragem. Tenho, de alguma forma, acompanhado a sua produção na imprensa local. Não se trata de elogiar o seu trabalho, que em Aragem superou as minhas expectativas. De fato, Fabiano tem se esforçado em suas pesquisas no campo da linguagem e da observação.
Um haicai me chamou a atenção:

casebre à venda –
um lírio branco a pender
no caos da cidade

Sendo o lírio branco o kigo deste, o contraste está justamente no caos da cidade. O observador da natureza mantém um olhar atento aos acontecimentos mais fúteis que, em sua simplicidade, podem acabar sendo relegados a algo sem importância. O haicaísta não julga, apenas contempla e, assim, cessa qualquer intervenção intelectual. Quando isso acontece, forma-se uma amálgama entre o haicaísta e o assunto da composição. Não há mais ego. Nem interessa quem é o autor. O trabalho torna-se algo a ser compartilhado com os leitores, cada um destes conforme a sua sensibilidade.
A cidade, comumente vista como espaço do caos, pode ser também o lugar em que é possível perceber algo tão singelo como o lírio branco. Mas, justamente onde existe o caos, o haicai está presente em sua forma visceral e latente. Enganam-se aqueles que pensam que o caos é uma produção da cultura e, inversamente, a natureza o espaço da harmonia. O caos se presencia de igual maneira na natureza física, na confusão das cores durante a florada, no nascimento e na morte, no crescimento e na destruição.

silêncio abissal –
no horizonte em chamas
branca flor de cacto

Levando-se em consideração que o caos é uma realidade que nos cerca, o cuidado excessivo na composição do haicai, por uma questão ideológica, acaba por impor uma ordem no mundo através da linguagem e deturpa aquilo que se apresenta de maneira própria. Mas o haicai tem um viés torto. Nesse caso, nada melhor do que mostrar a natureza em sua face verdadeira:

anjo e trombeta
em mármore esculpidos –
os brancos jasmins

Em atitude contemplativa compomos os haicais, sem acabar com o ego, mas deixando-o suspenso, evitando sua interferência naquilo que percebemos com os nossos sentidos. Para os iniciantes, nem sempre isso é possível, pois a mente não se acalma, luta para se impor, dar a sua opinião, mostrar que existe e necessita sobreviver. Pode ser diferente disto:

carrilhão silente –
noite vazada de estrelas
no pátio do claustro

O silêncio é uma grande dádiva, pois a natureza se apresenta de maneira inteira, às vezes assustadora, também engraçada, contraditória, ou apenas natureza:

trens de Santiago –
nos cimos da cordilheira
só silêncio e neve

Nestes anos de pesquisa e vivência no haicai, alguma coisa devo ter aprendido. Quando o mestre partiu, duas possibilidades se abriram: penetrar fundo ou abandoná-lo. Nesta caminhada solitária, errando passos, acertando outros, a argila calcada secou. Ficou mais fácil caminhar, pois os passos estavam marcados onde pisar. Tenho grande fé em Antonio Fabiano, que continue nesta empreitada de caminhar, nas trilhas de Matsuo Bashô. Enquanto houver caminhantes, o haicai continuará florescendo.
Mais uma reflexão: a natureza a que se refere a composição do haicai está diante do poeta como dentro dele. Digo, a Natureza como o universo todo, a lua e as nuvens, o vento e o sol, o pé de mexerica e a flor de ipê, as manifestações humanas, o homem e o próprio haicaísta. Não imagino o haicaísta separado da natureza, bem como a natureza do próprio haicaísta distante de sua composição. 
Se a leitura de uma coletânea de haicais tem a capacidade de mudar a concepção do mundo, acho que alguma coisa mudou também em mim. Mais do que qualquer euforia, trouxe-me um imenso silêncio. Um silêncio de eternidade.



                Francisco Handa
Doutor em História, monge budista do Templo Busshinji e um dos fundadores do Grêmio Haicai Ipê.

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[*] Este vocábulo foi adotado pelos nossos literatos e continua sendo utilizado no Brasil com a mesma função que exerce em sua origem: palavra da estação, eixo de sustentação do haicai tradicional.


terça-feira, 5 de junho de 2018

HAICAI BRASILEIRO - Edson Kenji Iura


HAICAI BRASILEIRO
- Edson Kenji Iura - 
Haicais de Seishin
21 de Maio de 2018, seg


Seishin é o haigô (nome de haicaísta) adotado pelo monge carmelita descalço Antonio Fabiano, que conheceu o haicai ainda durante os tempos universitários, antes de se filiar ao Grêmio Haicai Ipê e seguir os ensinamentos da mestra Teruko Oda. Desde então, vem se destacando no gênero, como mostra o Prêmio Especial recebido na edição de 2015 do Concurso Yoshio Takemoto e, recentemente, o Prêmio Matsuo Bashô, promovido pela Editora Mondrongo, do qual resulta o presente livro, composto de 64 haicais.

Francisco Handa, responsável pelo prefácio, destaca a qualidade do trabalho de Seishin, representante de uma nova geração de haicaístas que segue o caminho desbravado por Goga Masuda e Teruko Oda, pioneiros do haicai tradicional escrito em língua portuguesa. Seishin também contribui regularmente com a coluna Haicai Brasileiro.

Aragem é o título do livro de Seishin, publicado em Itabuna (BA), 2018, pela Editora Mondrongo, com 84 páginas. 
O email para contato é seridoano@gmail.com .

segunda-feira, 14 de maio de 2018

ARAGEM - Por Silvério da Costa

Imagem disponível na Web

Jornal SulBrasil
CHAPECÓ, Quinta-feira, 26 de Abril de 2018
ANO 24 Edição 7.135

OPINIÃO
Fronte Cultural

ARAGEM!
Por Silvério da Costa

“ARAGEM” é o livro vencedor do “Prêmio Matsuo Bashô de Poesia Haicai-2017”. O seu autor é o poeta Antonio Fabiano, cujo nome haicaístico é SEISHIN. Recebi este livro e o li e reli como uma espécie de lenitivo para o espírito.
O haicai, para quem não sabe, é um poema muito popular, que prima pela síntese. Tem apenas dezessete sílabas poéticas, distribuídas pelos três versos (o primeiro e o terceiro com cinco sílabas cada um, e o segundo com sete sílabas) que o constitui. O seu mestre-mor é/foi Matsuo Bashô, mas o haicai é um gênero de poema exercitado por quase todos os grandes poetas do mundo e, claro, não poderia faltar Antonio Fabiano, que parece morar dentro desse espaço chamado Haicai.
E de lá nos fala da natureza vegetal, vinculada às quatro estações do ano, mas também da fauna, da vida como um todo e de outras nuances haicaianas. O poeta domina a técnica do haicai, soberanamente, e, por isso, venceu, com todos os méritos, o referido concurso! Eis aí a prova...

estalido brusco —
entre as folhas do jardim
uma rã em fuga

na sombra da noite
o vulto de um velho monge —
pinheiro solitário

um tanque de guerra
avança em tempo de paz —
o escaravelho

velha e estreita rua
para a zona do prostíbulo —
a dama-da-noite

quaresmeira em flor —
austeridade e leveza
da casa em ruínas

um fado suave —
nas ruelas de Coimbra
a cor deste outono

um pedinte cego
na escadaria do templo —
a noite estrelada

terça-feira, 20 de março de 2018

SEISHIN 清心

Seishin  清心 é o haimei, nome haicaístico, de ANTONIO FABIANO, carmelita descalço e poeta brasileiro.
Sua incursão no haicai se dá a partir do final da década de 1990, quando estudou poética clássica na faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e teve contato com este gênero literário nascido no Japão.
Seishin é discípulo de Teruko Oda no haikai dô, sobrinha e discípula de H. Masuda Goga, discípulo de Nenpuku Sato, discípulo de Kyoshi Takahama, discípulo de Shiki, o último, em ordem temporal, dos quatro grandes mestres de haicai do Japão, ao lado de Issa, Buson e Bashô.
Em 2015 recebeu o honroso Prêmio Yoshio Takemoto, conferido pela Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil, por uma coleção de haicais intitulada “O Cravo no Peito”.
Em 2017 ganha o Prêmio Matsuo Bashô de Poesia Haicai, da Editora Mondrongo, pelo livro Aragem.

quarta-feira, 14 de março de 2018

A PALAVRA "ARAGEM"

Capa de Ulisses Góes

A palavra ARAGEM – título original deste livro no Brasil – significa em português “vento brando”, “vento que cessa e recomeça em intervalos”, “vento descontínuo”. Significa também “momento favorável” ou “de boa sorte”. Aragem é um kigo de primavera, é o mesmo que brisa. No livro de kigos do Brasil – Natureza: Berço do Haicai de H. Masuda Goga e Teruko Oda – o vocábulo é definido como “ventinho gostoso”. Em português, a palavra aragem está igualmente relacionada ao verbo arar, que é sulcar a terra com um arado, instrumento agrícola, ou sulcar as águas, navegar.