segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

SAPATOS AZUIS

Ganhei um par de sapatos azuis, certo dia. Na verdade, o presente foi dado a outro rapaz. Mas, como ele não conseguia imaginar em seus pés algo dessa cor, decidiu ser generoso e me presenteou.
Puxa, como há pessoas desapegadas neste mundo, você dirá!...  
Eu também não conseguia me imaginar de sapatos azuis, dificilmente escolheria tal cor em uma loja de sapatos de todas as cores. Desde que me lembro, eu sempre tive sapatos pretos. E continuo preferindo essa cor. Sou muito previsível. Todo homem é. Porém, “cavalo dado não se olha os dentes”, e o mesmo pode ser dito de sapatos, não no que toca a dentes, claro, mas no que se refere à cor.
Foi entre dúvida e curiosidade que consegui calçá-los a primeira vez. Que cor medonha para um par de sapatos! Pensei. Será que todos vão olhar para os meus pés? 
Acontece que ficou muito bom, eu gostei. Acredite se quiser: não são tão indiscretos! (toc... toc... toc...) São azuis. Bonitos e azuis. O suficiente para se pisar no céu, sem culpa ou vaidade.

 Antonio Fabiano

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

MEU QUERIDO RELÓGIO DESPERTADOR

Imagem ilustrativa encontrada na Internet

Tenho um relógio despertador que ganhei de presente de um amigo há anos Eu o trago sempre comigo à cabeceira da cama Uma vez levando-o em viagem ao Rio Grande quebraram seu vidro no aeroporto Aperto de malas ou coisa do tipo O reloginho despertador funciona muito bem apesar do que eu disse E é de estimação como coisa que a gente guarda para sempre Esta semana resolvi levá-lo a um velho relojoeiro da cidade um japonês renomado na arte de consertar as horas do que quer que seja Ao chegar à loja apresentei-lhe o despertador na fé de que eu não sairia dali sem meu companheiro de concerto de horas prontamente consertado O japonês aliás um velho conhecido olhou-me a rir e a dizer que não tinha jeito o relógio era muuuuuitooo antigo de mais de vinte anos e não havia peças para substituição Ora aquele homem com ares de sabedoria milenar me fez sentir mais velho do que o meu avô e como se eu tivesse nas mãos um fóssil de tiranossauro rex Ainda perguntou irônico Se funciona bem que mal tem Desapontado saí da loja e não me dando por vencido fui a outro relojoeiro da cidade Não é possível que não possam resolver isso aqui Na outra casa o relojoeiro desprovido de sabedoria zen sem qualquer paciência milenar e muito mais afeito ao imediatismo ocidental foi incisivo ao falar sem rodeios Joga isso no lixo e compra um novo Nem preciso dizer que ele feriu meu sentimento Deixei pra lá Meu despertador segue à cabeceira da cama com seu vidro quebrado mas trabalhando muitíssimo bem É claro que na era digital o celular faz tudo e eu não preciso do velho relógio para me acordar ou dar as horas Mas gosto que ele esteja ali com seu ininterrupto tic tac tic tac tic tac que não para nunca Essa inutilidade toda me fascina


Antonio Fabiano 
www.antoniofabiano.blogspot.com.br

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

CAMINHADA VESPERTINA

Fotografia de Antonio Fabiano

Depois de um tempo sem escrever crônicas neste blog, resolvi voltar a fazê-lo. É possível que alguém me leia, mas não é nisto que estou pensando agora. Se você quiser participar, caro (hipotético) leitor, ficarei feliz. Mas sinta-se à vontade para parar por aqui, caso não queira passar ao parágrafo seguinte. O que eu vou dizer não serve pra nada... Ou, talvez... só sirva pra nada!
Algumas vezes caminho e sinto incontrolável desejo de escrever. Será que sou peripatético ou só patético? Saio a caminhar por prazer e por necessidade, uma vez que – “oh, tão jovem!” – descobriram-me hipertenso. Olha, estou confessional já no segundo parágrafo! Perdoe-me, leitor! Isso é tão indiscreto quanto alguém com menos de cinquenta anos chamar-me, aos 36, de “oh, tão jovem!” e, com cara forçada de espanto, dizer “já hipertenso!”. As pessoas mentem de maneira muito indiscreta, quando mentem por educação ou falsa solidariedade.
Mas eu queria mesmo era falar do prazer, não da necessidade, de se caminhar. Como dizia, saio quase ao final da tarde e nestes dias de horário de verão há claridade até dentro da noite. (Ainda era primavera, quando começou o horário de verão, então pensei: soberbo é o verão!) Assim, posso contemplar o pôr-do-sol sem ter pressa de voltar a casa. A lua duela no céu com o dia, nestas horas, como nos primeiros instantes de algumas manhãs.
O que eu mais gosto é da cor que se forma no mundo, quando a tarde cai de mansinho. Uma dormência invade a terra e o coração, todos se tornam, ao menos um pouco, contemplativos.
É exatamente esta indefinição, este trânsito entre o dia e a noite, o não ser mais dia nem ainda noite, a coisa inominável que amo nos finais de tarde. Não, a palavra não é crepúsculo! Falo sério quando digo que é inominável, ao menos para mim. 
Antigamente, quando eu vivia em minha cidade de origem, a linda e pequeníssima Cerro Corá, costumava ir à praça para ver o pôr-do-sol que acontecia bem mais cedo do que aqui. Sobre o açude Eloy de Souza e as montanhas, as horas desciam sagradas.  
Nunca soube dizer se é laranja ou vermelha a cor de que se pintam os montes quando a tarde cai relutante, como namorados ao se despedirem. Também nunca soube dizer o que vai na alma quando vejo esta tela viva das esferas, tarde após tarde... (sem propósito algum e para poucos expectadores). Quanto tempo dura a tonalidade abstrusa de que se vestem as árvores e tudo o que existe, ao assumir aquele aspecto impenetrável do mistério que se mostra para se esconder ainda mais? É uma adoção e um desamparo tão grandes! Nunca poderá chamar-se tristeza ou nostalgia... Nem se assemelha à alegria, porque, diferente da alegria, essa outra dádiva é incomunicável. Mais parece um monge a rezar em estado de graça, imóvel como uma estátua, tão dentro dele mesmo que dirão: “está fora de si, o pobrezinho!... deixemo-lo em paz!”.


Antonio Fabiano
www.antoniofabiano.blogspot.com.br