sábado, 27 de outubro de 2012

Aos 104 anos, Manoel de Oliveira vai filmar conto de Machado de Assis

Manoel de Oliveira (Divulgação)

São Paulo – No cinema de Manoel de Oliveira há algo de intemporal que, paradoxalmente, se liga bastante, quando bem pensado, ao tempo presente. Essa característica dúbia fica bem evidente em O Gebo e a sombra, seu filme mais recente, apresentado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O velho mestre, de 104 anos, já está aprontando novo filme, para manter a média de um por ano. O próximo trabalho pode ser baseado em “A igreja do diabo”, conto de Machado de Assis, informou o ator português Luiz Miguel Cintra.  “Ele está muito bem, cheio de energia e trabalhando no roteiro de ‘A igreja do diabo’”, garantiu o artista. A ambivalência de Machado, em especial nesse conto em que o bem aparece apenas contra o pano de fundo do mal, e vice-versa, será inspirador para o cineasta. De certa forma é também o que ocorre com O Gebo e a sombra, baseado numa peça dos anos 1920 do dramaturgo português Raúl Brandão. A peça tem quatro atos, dos quais Manoel conservou apenas três.

Contador e cobrador de uma firma, Gebo é interpretado pelo grande ator francês Michael Lonsdale. Sua mulher, Doroteia, é vivida por Claudia Cardinale. O filho, João, por Ricardo Trêpa, neto do diretor. A mulher de João, Sofia, por Leonor Silveira. Jeanne Moreau faz uma vizinha intrometida, Candidinha. Leonor, Cintra e Trêpa fazem parte da trupe habitual de Oliveira. O restante do elenco dá ideia do prestígio internacional a que chegou o cineasta português. A locação é única, a sala de uma casa modesta, onde Gebo, em seu livro de anotações, faz e refaz cálculos, noite adentro. Bebe café para se manter acordado e diz que trabalha tanto, apesar da idade, para que a família não morra de fome.

A fotografia, magnífica, é construída em meios-tons, como iluminada apenas pelos candeeiros que se veem em cena. É propícia para um ambiente no qual tudo nunca é dito diretamente, porque se trata de preservar, acima de tudo, a figura da mãe, que pede notícias do filho.

Fonte: Estado de Minas
Quinta-feira, 25 de outubro de 2012

terça-feira, 16 de outubro de 2012

LIVRO ABERTO


NOITE ESTRELADA

Há uma noite no meu livro
Como também o vento que o atravessa e enche.
Amei os ventos desde menino.
“O vento sopra onde quer
– disse o meu Mestre –
Ouves o seu ruído
Mas não sabes de onde ele vem
Nem para onde vai.”
Há uma noite no meu livro
Como também o tempo
E a hora extrema
Que ultrapassa-se.
Para os mais violentos corações
Uma pérola escondida e o meu silêncio.
“Quem nasce do espírito
É como o vento”...
Há uma noite no meu livro.
Mas nela que era imensa
Fez-se o luzir intenso da verdade
A luz.
Dou-te um segredo lapidado:
A noite do meu livro
É estrelada.


INFINITO

As estrelas no céu guardam um nome,
Um segredo, um mistério em cada brilho.
Eu, com os pés descalços, o mar trilho
Da infinita Via Láctea, lume...

Pois fui rei noutros mundos em outrora...
E este céu, que ao silêncio se abisma,
Portentoso e cúmplice da cisma,
Em cada canto um pranto por mim chora.

Ao transpor das esferas o portal,
Não perdi minha glória d’ imortal...
Inda canta a minh’alma, diz em grito:

Eu sou irmão dos deuses!... De saudade
Todos os astros choram a irmandade
Partida nas distâncias do infinito!...


(FABIANO, Antonio. “Sazonadas”, Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2012).


ASSIM...


DELICADO

Minhas mãos teceram este poema
Com fios de tua ausência
(Solidão)
Cativas do silêncio
– Nostalgia –
Traços da mais efêmera ilusão...

De agruras me fiz
E de arredias
Tardes
Em linhas d’uma espera inacabada
Onde eu não sei saber-te mais que amor!

Vivo de mim já não lembrado!
Por teu querer tornei-me delicado!
E quando agora eu toco as coisas frias
Que a vida espalha pelo tempo e cantos
Não o faço com mais força do que a brisa
Nem com ruído mais que este do orvalho
Tombando sobre as taças!...


CARENTE

Ando carente de um amor, o que fluísse
Sobre o meu mau-humor e este sentir de
Lancinantes dardos que atormentam-me;
O que viesse sobre a minha amarga dor
E excitados lábios, muros da boca,
Feitos para o beijo,
Na cor profunda, vívida
De um não sei quê já bem suave e quase
Fugidio...

É como a chama de uma vela o meu amor,
Bem delicado...
É como um sopro que aviva o fogo... Ardor...
E dança... E brilha... E dança...

Oh, ginga abrandante, velha e ingênua ginga,
Do ritual criado pra dar trégua a meu horrível tédio!
Quero o amor que seja como as águas
Das cataratas de Iguaçu
E eu derramado, como de um vaso espedaçado,
Ao jorro de um luzir de estela
Que resplendesse ainda mais alto e intenso!

Eu quero o sopro dos alentos,
Mergulhar bem fundo
Em desmaiadas plagas,
Perder-me no azul
De uns olhos lindos
E ali morar, morrer, me afogar...
Depois boiar
Sempre à deriva do que tênue se passa
Entre o luar
E as águas deste humilde charco,
A condição humana ou, mais que tudo,
O meu silêncio
Gritado no secreto sono. 


TROPEL

Em mim, meu bem, o sagrado e o profano se misturam
com a mesma precisão enigmática
de um rio em curso
veloz
a devassar o chão molhado
de tua espera!

De dentro de mim, só para ti,
ruge um tropel
como se houvesse no meu peito e no meu corpo
mil cavalos sem asas a desejar teus prados!

Pelos cantos dos teus olhos
tu me furtas
e eu me adentro sorrateiro
sem dizer palavra alguma
dono e ladrão de delícias...

(...nossos desejos reticentes coincidem).

Por esta causa tornei-me como os braços de um rio
que em sonho sonha-se mar
soberano e doce...

E não me estanco de te abraçar!

(FABIANO, Antonio. “Sazonadas”, Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2012).



AMOR MAIOR

Os ipês não saem da minha cabeça.
Na verdade há uma coroa de flores amarelas
Posta em meu pensamento.
É um tormento quando há floração:
Durante vinte dias sofro
A beleza me fere e mata!
Mas não era de ipês que eu ia falar...
É de uma árvore sem folhas que eu vi e amei
E que não é ipê. Era sombria e de longos galhos
Ali como se estivesse desde a eternidade
(embora eu não saiba o que é isso).
Talvez pelo meu exaltado estado
De espírito
Fiz de ti frondosa árvore
O objeto de meu puro amor.
E o meu amor haveria de te cobrir de folhas e dar frutos
Apressando as estações
Ultrapassando-as
Superando-se a cada passo
Na crença de que amor que é amor
Não espera nada.
Por quanto tempo eu te amei não sei.
Amor apaga tempo e outras noções.
Eu quando amei parei uma ou três vezes
O sol com a mão no meio céu
Para que fosse pleno o dia e para que durasse
A eternidade (esta que eu não sei).
Mas somos tão pequenos ó árvore!
O infinito nos sufoca e humilha.
E eu que parti primeiro
Traí meu objeto de amor.
Tuas folhas cairão de novo
Como os meus cabelos.
Outros virão e te amarão
Com amor sempre novo
(pois se é amor é sempre novo)
Mas nunca como eu
Que te dei flores frutos
Ainda que humildes
E a paina espalhada pelo chão de um dia
Com beleza macia e vento a te soprar cantares.
De ver-te infindas vezes
(tão obcecadamente)
Eu me ceguei.
A medo eu nada disse
Porque era impotente o meu silêncio
De contemplação.
É maldita a sorte de quem ama árvore eterna
E desce ao fundo de sua raiz.
Mas saberá alguém amar e não descer?
Quando a minha boca ficou vazia de palavras
E mais que ela o coração
Eras ainda bela e altiva!
Eu nunca conheci amor maior
Que o de dar flores a uma árvore
E isto eu te dei.


(FABIANO, Antonio. “Sazonadas”, Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2012).

MAIS ALGUNS...


PONTEIROS

Um segundo
tempo-instante
adiciona-se
ao relógio virtual.

Um segundo
nome
– algarismo romano –
(re)define o outro tempo
ultra-real.

Qualquer coisa
ou outra coisa
caiu...
...foi arrastada
pelos ponteiros
primeiro e segundos
da marcação a-temporal
de nossa história da humanidade.

Relógios marcam horas,
não poesia.
Relógios marcam coisas,
não pessoas.
Relógios tocam tudo,
menos a música do tempo.

Ponteiros
...giram giram
e sempre voltam
para acariciar ou espetar os homens
com aquela verdade
que quando a entendemos
já não temos mais tempo.


ESTÁTUA DE SAL

Rua dos ursos polares tão branca e feia
Eu quis dar-te um poema para que existisses
Além da cal na pele escura dos homens
Que em ti suam e fazem do pó labuta
A vida e o fim seus.
Rua tão triste de ursos mascarados
Onde os que passam apressam o passo
E passam sem querer voltar.
Onde o meu paço de poesia ergueu-se
Ignorando carros transeuntes pés
Gente que nem te olha e só te pisa e ignora.
Rua onde eu passei com o coração flechado
E fui capaz de urgir o tempo ao olhar pra trás.
Olhei e vi figuras bípedes
Seres congelados no passado
Os que deixaram de existir há tempos
Os que não voltam mais para o presente
Que me dariam em noite de Natal.
Eram pálidas as figuras e mais pálidas
As que amei – em meu desesperado amor.
Eram estátuas de um museu de musas
E eu (porque olhei pra trás)
Tornava-me também estátua
Nua e fria.

Um silêncio delirante cobriu meu sonho
E a noite imensa.


MINHA TERRA

Minha terra!
O tempo passa e amadurecemos.
Mas envelheço e tu remoças
Na força dos que chegam
Fortes mais que eu.

Como um condenado nas galés
Hoje eu te olho.
Como forasteiro e só.
Dos porões da história
A que nunca escrevi
Hoje eu te sinto e choro.

Porque passei.
Passei e
Não me viste!
Ataviei-me de beleza
E nem sequer me olhaste.

Fiz-me teu filho por escolha e
Sem o ser degenerado
Órfão deixaste-me.
Eu de outros ventres parido...
Eu o não legitimado.

Dobra o sino. Em meu lamento?
Não era pra ser triste este poema.

Aqui perdido
Outra vez
Me tens – me tens
A sonhar teus voos
Glória mil vezes
Maior que a possível
E não me tens... me tens...
Me tens...

Minha terra! Minha terra!...
Quando dizer isso dói tão fundo
E aí deixar-te.
Onde chover é tão bonito
E a saudade não termina
Nunca.

Aí, onde as serras ganham contornos de infinito
E o rio grande que nasce pequeno
Te dá águas para o mar
E outra vez te deixa para nunca mais.

Mas porque saio de ti
Que em mim não findas
A claridade dos teus dias
Vai pelos meus passos
Vida afora.


(FABIANO, Antonio. “Sazonadas”, Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2012).