segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O REINO DOS FINS, O IMPERATIVO CATEGÓRICO E A LIBERDADE – Antonio Fabiano

Em plena segunda secção da Fundamentação da metafísica dos costumes, onde como já sabemos se pretende provar a transição da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes, Kant introduz a ideia de Reino dos fins. Esta ideia está concatenada ao conceito de que todo ser dotado de razão deve ter-se por legislador universal, desde as máximas de sua própria vontade. Destarte, julga-se a si mesmo e obviamente às suas ações.
Romano Galeffi ilustra com bastante eloquência isto, quando em sua A filosofia de Immanuel Kant põe-se a falar do Reino dos fins:

"Bem no meio de um trabalho em que a razão crítica alcança cumes altíssimos através de um esforço verdadeiramente titânico, esta imagem kantiana do mundo moral num reino dos fins nos faz pensar num dos sublimes interlúdios que o grande Platão inseria, às vezes, lá pelo meio de seus diálogos (como por exemplo o mito das almas após a morte no Fedon) quase para dar à mente cansada de tanto raciocínio um momento de trégua, numa visão mítica da realidade. Mas, como todo mito contém um significado simbólico que resume, muitas vezes, uma inteira doutrina, assim, nesta imagem de um reino dos fins, nós podemos ver simbolicamente representada a verdadeira pátria à qual pertence o homem, de direito, pela sua natureza racional, pela sua espiritualidade. Trata-se de um mundo a realizar-se – é claro –, mas que não podemos deixar de querer que se realize, sem, por isso mesmo, perder a verdadeira prerrogativa de homens." (GALEFFI, 1986, p.161).

Mas, que coisa é para Kant um Reino dos fins?

"Por esta palavra reino entendo eu a ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns. Ora como as leis determinam os fins segundo a sua validade universal, se se fizer abstração das diferenças pessoais entre os seres racionais e de todo o conteúdo dos seus fins particulares, poder-se-á conceber um todo do conjunto dos fins (tanto dos seres racionais como fins em si, como também dos fins próprios que cada qual pode propor a si mesmo) em ligação sistemática, quer dizer, um reino dos fins que seja possível segundo os princípios acima expostos." (KANT, 2002, p.75-76).

E imediatamente explica-se que qualquer ser racional está sujeito àquela lei que proíbe tratar-se a si mesmo ou a outrem como meio. Esta é a mesma lei que obriga ao tratamento simultâneo em relação a si e aos outros como fins. É disto que procede a ligação, sistemática, dos seres dotados de razão. Como? Através de leis objetivas comuns, o que é a mesma coisa que dizer um reino que, exatamente porque estas leis têm em vista a relação destes seres uns com os outros como fins e meios, se pode chamar de um reino dos fins (KANT, 2002, p.76). Mas não nos iludamos, o próprio Kant nos inteira que isto é tão somente um ideal.
Exploremos um pouco mais esta idealidade do Reino dos fins...
Galeffi já nos lembrara: esta idealidade pode transformar-se em realidade no íntimo de cada um, mesmo sem esperar que todos cheguem a alcançar tão alto grau de espiritualidade (GALEFFI, 1986, p.162). E, se concordarmos com ele, daremos por bem empregadas estas suas últimas palavras a respeito do Reino dos fins: Nunca uma concepção moral alcançara, antes, semelhantes alturas a não ser a moral do Evangelho com a qual a kantiana substancialmente se identifica (GALEFFI, 1986, p.163).
O ser racional, único passível de existência neste Reino dos fins – exatamente por ser dotado de razão, sem a qual esta ideia tornar-se-ia absolutamente inconcebível – é, neste mesmo Reino, membro e chefe. A ideia é fascinante e reafirma o princípio da autonomia há pouco apresentada. O filósofo Kant a exprime deste modo:

"um ser racional pertence ao reino dos fins como seu membro quando é nele em verdade legislador universal, estando porém também submetido a estas leis. Pertence-lhe como chefe quando, como legislador, não está submetido à vontade de um outro." (KANT, 2002, p.76).

Pensemos os conceitos de “membro” e o “chefe”. Importa dizer que este último não pode garantir seu lugar unicamente pela máxima de sua vontade. Sozinha, a máxima desta vontade seria insuficiente para um tal privilégio. Para isto, então, é preciso ser-se um ser totalmente independente, sem necessidade nem limitação do seu poder adequado à vontade (KANT, 2002, p.76). Quer seja “membro” ou “chefe”, qualquer ser racional deve impreterivelmente considerar-se legislador. Isto se dá num reino dos fins possível pela liberdade da vontade (KANT, 2002, p.76). Como seria este Reino dos fins possível? Faz-se necessário antes dizer, do alto das ameias do principal castelo, ao toque de mil trombetas e em notas bem kantianas, o que é a moralidade neste Reino:

"A moralidade consiste pois na relação de toda a ação com a legislação, através da qual somente se torna possível um reino dos fins. Esta legislação tem de poder encontrar-se em cada ser racional mesmo e brotar da sua vontade, cujo princípio é: nunca praticar uma ação senão em acordo com a máxima que se saiba poder ser uma lei universal, quer dizer só de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal. Ora se as máximas não são já pela sua natureza necessariamente concordes com este princípio objetivo dos seres racionais como legisladores universais, a necessidade da ação segundo aquele princípio chama-se então obrigação prática, isto é, dever. O dever não pertence ao chefe no reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida." (KANT, 2002, p.76-77).

Agir segundo o dever, como necessidade prática dos seres pertencentes a este Reino dos fins, é pautar todas as ações sem perder de vista o fato de que elas são relações de seres racionais entre si ou consigo mesmos, e levar em conta que a vontade de todos estes mesmos seres é uma vontade indiscutivelmente legisladora. Pois que de outro modo seria cada homem um fim em si mesmo? É exatamente a soberana razão que, de seu posto majestático, se encarrega de unificar as coisas mais diversas que aparecem neste Reino:

"A razão relaciona pois cada máxima da vontade concebida como legisladora universal com todas as outras vontades e com todas as ações para conosco mesmos, e isto não em virtude de qualquer outro móbil prático ou de qualquer vantagem futura, mas em virtude da ideia da dignidade de um ser racional que não obedece a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente dá." (KANT, 2002, p.77).

Neste ponto o filósofo estabelece um paralelo entre preço e dignidade. No Reino dos fins tudo tem isto ou aquilo. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade (KANT, 2002, p.77). Kant irá falar de diversos preços (venal, de afeição ou de sentimento), os quais são relativos, desprovidos de valor absoluto. Mas aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade (KANT, 2002, p.77).
Evidentemente, para Kant só a moralidade é condição de admissão do ser racional como fim em si mesmo. É impensável este ser racional, membro e legislador, sem a moralidade. Esta, sim, é a coroa a enobrecer aquele que a razão desposa. Se nos são permitidas estas metáforas, diremos que esta coroa já nasceu com o coroado, o qual desde que é o que é tem-se por esposo daquela que com ele divide seu Reino. Aqui consideramos exclusivamente o ser humano, não obstante a universalidade do conceito de racionalidade que nos é dado por Kant, e que é válido para todo e qualquer ser racional que seja. E do que dissemos se pode inferir que: a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade (KANT, 2002, p.77-78).
Quando Kant aborda as coisas que têm valor íntimo (aqui se incluem a natureza e a arte), diz que elas impõem respeito imediato. Ele retoma o paralelo entre “preço” e “dignidade”. E, em um dos momentos mais felizes de sua Fundamentação, conclui de modo admirável o pensamento:

"Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade." (KANT, 2002, p.78).

As grandes exigências feitas pela intenção moralmente boa ou pela virtude só são possíveis porque o ser racional é participante de uma legislação universal, o que sem dúvida o torna capaz de vir a ser membro daquele reino dos fins quiçá possível. É pela própria natureza do ser racional, enquanto fim em si mesmo, que ele se descobre legislador neste reino e acima das leis da natureza, obrigando-se a obedecer tão somente às leis que ele mesmo se dá.

"Pois coisa alguma tem outro valor senão aquele que a lei lhe confere. A própria legislação porém, que determina todo o valor, tem que ter exatamente por isso uma dignidade, quer dizer um valor incondicional, incomparável, cuja avaliação, que qualquer ser racional sobre ele faça, só a palavra respeito pode exprimir convenientemente." (KANT, 2002, p.79).

Ora, nós já sabemos que o fundamento da natureza humana (toda natureza racional) é aquilo que denominamos autonomia. A expressão desta autonomia impõe iniludível respeito. Todas as maneiras que já vimos de se exprimir o princípio da moralidade são, pois, fórmulas diversas da mesmíssima lei. Há, contudo, nelas uma diferença que segundo Kant é mais subjetiva do que objetivamente prática. Isto, apenas para acercar a ideia da razão daquela outra da intuição e, por conseguinte, do sentimento. As máximas que vimos, todas elas, continham forma (universalidade), matéria (fim em si mesmo) e determinação completa. Esta última condensa todas as máximas fazendo-as compactuar com a já referida ideia de um reino dos fins possível. Kant ainda sintetiza o progresso disto, pelas seguintes categorias: unidade (referente à forma da vontade – universal), pluralidade (referente à matéria, dos objetos ou fins), e totalidade do sistema. Mas a concordar com o próprio Kant, é preferível no juízo moral, agir de acordo com o método rigoroso, basear-se na fórmula universal do imperativo categórico.* [NOTA: “Age segundo a máxima que possa simultaneamente fazer-se a si mesma lei universal.” (KANT, 2002, p.80).] O que se deve levar em conta é que, uma vez que se queira dar à lei moral acesso às almas, se faz necessário filtrar a ação pelos três já referidos conceitos, na tentativa de aproximação da mesma ação quanto à intuição (cf. KANT, 2002, p.80).
Já estamos em condições de concordar com Kant, no que diz respeito ao outrora visto conceito de boa vontade. É importante reportarmo-nos a isto. É absolutamente boa a vontade que não pode ser má, isto é, aquela da qual a máxima, vindo a tornar-se lei universal, jamais se contradiria. Uma vontade que não se contradiga, em hipótese alguma, cuja máxima possa sem embargos tornar-se lei universal, é condição única para que o imperativo seja realmente categórico. Esta vontade transformada em lei, universalizada e aplicada a ações possíveis, tem analogia com a ligação universal da existência das coisas segundo leis universais, que é o elemento formal da natureza em geral, motivo pelo qual o imperativo categórico recebe agora esta nova forma: Age segundo máximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objeto como leis universais da natureza. Assim, de acordo com o filósofo, constitui-se a fórmula de uma vontade absolutamente boa (KANT, 2002, p.80-81). Tudo isto é absolutamente imprescindível para a conjetura de um Reino dos fins. Pois é pelo fato de se pôr um fim a si mesma, que a natureza racional difere de tudo. De maneira que só resta admitir que este fim tem de ser alvo de toda boa vontade. Mas será mesmo isto? Ora, o fim aqui não deverá ser concebido como um fim a alcançar, mas sim como fim independente e, por conseguinte, só de maneira negativa. Não desviar-se dele, em hipótese alguma, nunca agir contra o mesmo etc. E aqui já podemos perceber com clareza, como o quer Kant: este fim não pode ser outra coisa senão o sujeito de todos os fins possíveis, porque este é ao mesmo tempo o sujeito de uma possível vontade absolutamente boa. Quem protagoniza este importante papel na moral kantiana? Ora, já sabemos muitíssimo bem que o sujeito de todos os fins é o ser racional mesmo. E este não pode ser meio, sob circunstância alguma, mas sempre condição suprema restritiva no uso dos meios, tomado simultaneamente como fim (KANT, 2002, p.81-82).
O ser racional submete-se a leis que ele mesmo se dá, como legislador universal. E não precisamos ir muito longe para entender que

"desta maneira é possível um mundo de seres racionais (mundus intelligibilis) como reino dos fins, e isto graças à própria legislação de todas as pessoas como membros dele. Por conseguinte cada ser racional terá de agir como se fosse sempre, pelas suas máximas, um membro legislador no reino universal dos fins. [...] Um reino dos fins só é portanto possível por analogia com um reino da natureza; aquele, porém, só segundo máximas, quer dizer regras que se impõe a si mesmo, e este só segundo leis de causas eficientes externamente impostas. [...] Um tal reino dos fins realizar-se-ia verdadeiramente por máximas, cuja regra o imperativo categórico prescreve a todos os seres racionais, se elas fossem universalmente seguidas." (KANT, 2002, p.82).

Kant não esconde a feição paradoxal desta simples dignidade do homem (natureza racional), e que tão somente o respeito por uma mera ideia, deva servir no entanto de regra imprescindível da vontade. Mas ele quer nos convencer, e não poupou esforços em sua Fundamentação, de que precisamente nesta independência da máxima em face de todos os motivos desta ordem consista a sua sublimidade e torne todo o sujeito racional digno de ser um membro legislador no reino dos fins (KANT, 2002, p.83). Para o filósofo, isto significa que a ordem imposta a um tal ser (desmotivada de outros móbiles) é plena em sua força e pode realmente mandar categoricamente, ela está investida de inconteste valor íntimo. O que se segue dirá, em síntese, todo o mais para enceramos esta discussão: A essência das coisas não se altera pelas suas relações externas, e o que, sem pensar nestas últimas, constitui por si só o valor absoluto do homem, há-de ser também aquilo por que ele deve ser julgado, seja por quem for, mesmo pelo Ser supremo (KANT, 2002, p.84). Pois não é o fato de uma pessoa estar sujeita à lei da moralidade, o que lhe dá alguma sublimidade, mas sim a razão de subordinar-se adequadamente a uma lei que ela própria legisla. A dignidade humana, portanto, está na capacidade de ser legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legislação (KANT, 2002, p.85).
Agora, sem mais delongas, passemos à terceira e última secção da Fundamentação da metafísica dos costumes, onde tocaremos de leve apenas alguns pontos, sem pretendermos assumir aquilo que somente a Crítica da Razão Prática realizará tão magistralmente.
Esta terceira secção busca, finalmente, mostrar a passagem da metafísica dos costumes para a crítica da razão prática pura. E nela, com destacada ênfase, Kant pretende nos fazer entender que o conceito de liberdade é fundamental para a compreensão da tão ressaltada Autonomia da Vontade.
A liberdade estará, segundo Kant, sujeita a leis imutáveis; de modo que vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa (KANT, 2002, p.94). Eis a razão do princípio de uma liberdade da vontade estar fundado na moralidade. Esta mesma liberdade, entendida como propriedade da vontade, não se restringe simplesmente à natureza humana, mas atribui-se a todos os seres racionais. E daí podemos entender:

"A todo o ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe necessariamente também a ideia da liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir. Pois num tal ser pensamos nós uma razão que é prática, quer dizer, que possui causalidade em relação aos seus objectos. [...] a vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a ideia da liberdade, e, portanto, é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade a todos os seres racionais." (KANT, 2002, p.95).

Vimos, então, que se atrelam moralidade e ideia de liberdade. Esta, apenas pressuposta para que se torne possível o que entendemos como ser racional cônscio de suas ações sob esta mesma ideia de liberdade própria.
O filósofo enseja:

"Da pressuposição desta ideia decorreu porém também a consciência de uma lei de ação que diz que os princípios subjetivos das ações, isto é as máximas, têm que ser sempre tomados de modo a valerem também objetivamente, quer dizer a valerem universalmente como princípios e portanto a poderem servir para a nossa própria legislação universal." (KANT, 2002, p.97).

Mas,

"para seres que, como nós, são afetados por sensibilidade como móbiles de outra espécie, para seres em que nem sempre acontece o que a razão por si só faria, aquela necessidade da ação chama-se um dever, e a necessidade subjetiva distingue-se da necessidade objetiva." (KANT, 2002, p.97).

O que se pode indagar depois disto é: como é possível que a lei moral nos obrigue? Não parece demasiado curioso que esta lei só obrigue os seres que se dizem livres? Já sabemos, com veras, que para Kant liberdade e autolegislação da vontade são o que ele chama pelo nome de autonomia. Estas indagações serão respondidas mais adiante.
Por fim, da definição de “fenômenos” e “coisas em si”, Kant chegará à distinção entre “mundo sensível” e “mundo inteligível”:

"segue-se por si que por trás dos fenômenos há que admitir e conceder ainda outra coisa que não é fenômeno, quer dizer as coisas em si, ainda quando, uma vez que elas nunca nos podem ser conhecidas senão apenas e sempre como nos afetam, nos conformamos com não podermos aproximar-nos bastante delas e nunca podermos saber o que elas são em si. Daqui tem de resultar a distinção, embora grosseira, entre um mundo sensível e um mundo inteligível, o primeiro dos quais pode variar muito segundo a diferença de sensibilidade dos diversos espectadores, enquanto o segundo, que lhe serve de base, permanece sempre idêntico." (KANT, 2002, p.99-100).

Como consequência disto, tem-se que encarar a impossibilidade de um conceito a priori do próprio homem, de maneira tal que este tem em si mesmo apenas conceitos empiricamente recebidos. Porém, mesmo em vista deste fato, o ser humano obriga-se a

"admitir necessariamente, para além desta constituição do seu próprio sujeito composta de meros fenômenos, uma outra coisa ainda que lhe está na base, a saber o seu Eu tal como ele seja constituído em si, e contar-se, relativamente à mera percepção e receptividade das sensações, entre o mundo sensível, mas pelo que respeita àquilo que nele possa ser pura atividade (aquilo que chega à consciência, não por afecção dos sentidos, mas imediatamente) contar-se no mundo intelectual, de que aliás nada mais sabe." (KANT, 2002, p.100).

A razão ocupar-se-á aqui de fornecer quanto possa a mais clara distinção entre mundo sensível e mundo inteligível. Um ser racional, qualquer que seja ele, deve considerar-se acima de tudo como inteligência, o que equivale a dizer que pertence nobremente ao mundo inteligível.
O filósofo desfecha assim:

"Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inteligível, o homem não pode pensar nunca a causalidade da sua própria vontade senão sob a ideia da liberdade, pois que independência das causas determinantes do mundo sensível (independência que a razão tem sempre de atribuir-se) é liberdade. Ora à ideia da liberdade está inseparavelmente ligado o conceito de autonomia, e a este o princípio universal da moralidade, o qual na ideia está na base de todas as ações de seres racionais como a lei natural está na base de todos os fenômenos. [...] Pois agora vemos que, quando nos pensamos livres, nos transportamos para o mundo inteligível como seus membros e reconhecemos a autonomia da vontade juntamente com a sua consequência – a moralidade; mas quando nos pensamos como obrigados, consideramo-nos como pertencentes ao mundo sensível e contudo ao mesmo tempo também ao mundo inteligível." (KANT, 2002, p.102-103).

Assim, em virtude da autonomia da vontade, como consequência desta admirável liberdade de que somos dotados enquanto seres racionais e, portanto, pertencentes ao mundo inteligível, nós temos de abraçar a moralidade e o que nos obriga em razão de também estarmos ligados a um mundo sensível, destituídos de uma vontade totalmente pura.
Para o filósofo está claro que se fôssemos puramente membros do mundo sensível nossas ações seriam regidas segundo a lei natural das inclinações e apetites; o que já conhecemos pelo nome de heteronomia da natureza e que se assenta no princípio da felicidade. Mas como membros do mundo inteligível, ganha descomunal relevo a imposição de uma conformidade com o princípio supremo da moralidade.
Se tanto buscamos saber como é possível um imperativo categórico, Kant agora nos responderá de modo incisivo:

"porque o mundo inteligível contém o fundamento do mundo sensível, e portanto também das suas leis, sendo assim, com respeito à minha vontade (que pertence totalmente ao mundo inteligível), imediatamente legislador e devendo também ser pensado como tal, resulta daqui que, posto por outro lado me conheça como ser pertencente ao mundo sensível, terei, como inteligência, de reconhecer-me submetido à lei do mundo inteligível, isto é à razão, que na ideia de liberdade contém a lei desse mundo, e portanto à autonomia da vontade; por conseguinte terei de considerar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim conforme a este princípio como deveres.
E assim são possíveis os imperativos categóricos, porque a ideia da liberdade faz de mim um membro do mundo inteligível" (KANT, 2002, p.104).


Passemos agora ao final da Fundamentação da metafísica dos costumes. Neste momento da obra que vimos estudando, Kant envida um derradeiro esforço para pôr em relevo o seu pensamento a respeito do limite máximo de toda a filosofia prática.
Da concepção de liberdade que o homem tem de si, quanto à vontade, procedem todos os juízos que tocam as ações ligadas ao dever, tenham estas ações acontecido ou não. Mas tal liberdade não pode ser um conceito da experiência, visto que implica uma necessidade e um conhecimento a priori. Aqui se estabelecem as nuances entre aquela liberdade e os traços da natureza que, por sua vez, também manifesta uma necessidade natural. O filósofo diz que

"a liberdade é apenas uma ideia da razão cuja realidade objetiva é em si duvidosa; a natureza, porém, é um conceito do entendimento que demonstra, e tem necessariamente de demonstrar, a sua realidade por exemplos da experiência." (KANT, 2002, P.106).

Mas, então, caímos naquilo que denominou-se “dialéctica da razão”. Parecerá que a liberdade da vontade entra em contenda com a necessidade natural. É preciso, portanto, desfazer esta aparente contradição. E Kant começa a desvencilha-se deste problema do seguinte modo:

"nesta encruzilhada a razão, sob o ponto de vista especulativo, acha o caminho da necessidade natural muito mais plano e praticável do que o da liberdade, no entanto, sob o ponto de vista prático, o caminho de pé posto da liberdade é o único por que é possível fazer uso da razão nas nossas ações e omissões; pelo que será impossível à mais sutil filosofia como à razão humana mais vulgar eliminar a liberdade com argumentos sofísticos. Há pois que pressupor que entre liberdade e necessidade natural dessas mesmas ações humanas se não encontra nenhuma verdadeira contradição; pois não se pode renunciar nem ao conceito da natureza nem ao da liberdade." (KANT, 2002, p. 106-107).

Cabe, então, à razão especulativa desfazer esta querela no tocante às questões teóricas, a fim de que a razão prática tenha plena garantia sobre o campo em que quer se instalar.
Aqui, mais uma vez, a razão se levanta portentosa, plena em sua independência. Isto não nos surpreende, se pensarmos que desde o surgimento e triunfo de seu império na Crítica da Razão Pura (1781), a mesma razão e sua soberania estão asseguradas em toda a obra kantiana. Aquela puríssima razão, que se perderia louca no vácuo das alturas a que chegou, não haveria de encontrar na moral o mais largo alcance de seu cetro?

"Mas a pretensão legítima que mesmo a razão humana vulgar tem à liberdade da vontade funda-se na consciência e na pressuposição admitida da independência da razão quanto a causas determinantes puramente subjetivas [...]. O homem que, desta maneira, se considera como inteligência, coloca-se assim numa outra ordem de coisas [...]. Pois que uma coisa na ordem dos fenômenos (como pertencente ao mundo sensível) esteja submetida a certas leis, de que essa mesma coisa, como coisa ou ser em si, é independente, isso não contém a menor contradição; mas que o homem tenha que representar-se e pensar-se a si mesmo desta maneira dupla, isso funda-se, para o primeiro caso, na consciência de si mesmo como objeto afetado pelos sentidos, para o segundo na consciência de si mesmo como inteligência, quer dizer como ser independente, no uso da razão, de impressões sensíveis (portanto como pertencente ao mundo inteligível).
Daqui provém que o homem se arrogue uma vontade que não deixa medrar nada que apenas pertença aos seus apetites e inclinações, e que, pelo contrário, pensa como possíveis por si, e mesmo como necessárias, ações que só podem acontecer desprezando todos os apetites e todas as solicitações dos sentidos. A causalidade dessas ações reside nele como inteligência e nas leis dos efeitos e ações segundo princípios de um mundo inteligível, do qual nada mais sabe senão que nesse mundo só dá a lei a razão, e a razão pura, independente da sensibilidade. Igualmente, como nesse mundo é ele, como inteligência, que é o eu verdadeiro (ao passo que como homem é apenas fenômeno de si mesmo), essas leis importam-lhe imediata- e categoricamente [...].
Ao introduzir-se assim pelo pensamento num mundo inteligível, a razão prática não ultrapassa em nada os seus limites; mas ultrapassá-los-ia se quisesse entrar nesse mundo por intuição, por sentimento. [...] O conceito de um mundo inteligível é portanto apenas um ponto de vista que a razão se vê forçada a tomar fora dos fenômenos para se pensar a si mesma como prática [...]." (KANT, 2002, p.108-110).


Immanuel Kant insiste em advertir que não podemos explicar o que extrapola as leis sob as quais um objeto se dá na experiência possível. Daí que a liberdade seja vista como mera ideia cuja realidade objetiva não pode ser de modo algum exposta segundo leis naturais e, portanto, em nenhuma experiência (KANT, 2002, p.111). Claro está que, onde não se pode conhecer a determinação por meio de leis naturais, tampouco se conhecerá qualquer explicação. Na verdade, isto nem de longe autoriza uma negação da liberdade, isto é, a liberdade como algo impossível. Podemos de fato perguntar: para que serve uma tal ideia de liberdade, nos moldes aqui apresentados? O filósofo mesmo responde:

"Ela vale somente como pressuposto necessário da razão num ser que julga ter consciência duma vontade, isto é duma faculdade bem diferente da simples faculdade de desejar (a saber a faculdade de se determinar a agir como inteligência, por conseguinte segundo leis da razão independentemente dos instintos naturais)." (KANT, 2002, p.111).

O filósofo quer que entendamos a total não contradição entre lei natural sobre as ações humanas, o homem enquanto fenômeno, e o homem como inteligência, ou seja, como verdadeiro eu ou coisa em si mesma. É preciso, segundo Kant,

"refletir e confessar, como é justo, que por trás dos fenômenos têm de estar, como fundamento deles, as coisas em si mesmas (ainda que ocultas), a cujas leis eficientes se não pode exigir que sejam idênticas àquelas a que estão submetidas as suas manifestações fenomenais.
A impossibilidade subjetiva de explicar a liberdade da vontade é idêntica à impossibilidade de descobrir e tornar concebível um interesse* [NOTA: Interesse para Kant é aquilo por que a razão se torna prática, isto é, se torna em causa determinante da vontade (KANT, 2002, p. 112).] que o homem possa tomar pelas leis morais; e, no entanto, é um fato que ele toma realmente interesse por elas, cujo fundamento em nós é o que chamamos sentimento moral [...] efeito subjetivo que a lei exerce sobre a vontade e do qual só a razão fornece os princípios objetivos." (KANT, 2002, p.112).


Parecer-nos-á espantoso que tenhamos vindo até estas alturas para ares de tão assombrosas impossibilidades? O filósofo, que não por acaso foi considerado a encarnação da razão pura, não titubeia ao afirmar que

"é totalmente impossível compreender, isto é tornar concebível a priori, como é que um simples pensamento, que não contém em si nada de sensível, pode produzir uma sensação de prazer ou de dor; pois isto é uma espécie particular de causalidade, da qual, como de toda a causalidade, absolutamente nada podemos determinar a priori, mas a respeito da qual temos de consultar só a experiência. [...] é-nos totalmente impossível a nós homens explicar como e porquê nos interessa a universalidade da máxima como lei, e, portanto, a moralidade. Apenas uma coisa é certa: – e é que não é porque tenha interesse que tem validade para nós [...], mas sim interessa porque é válida para nós como homens, pois que nasceu da nossa vontade, como inteligência, e portanto do nosso verdadeiro eu [...]. como uma razão pura possa ser prática – explicar isto, eis o de que toda a razão humana é absolutamente incapaz; e todo o esforço e todo o trabalho que se empreguem para buscar a explicação disto serão perdidos." (KANT, 2002, p.112).

Àquela primeira indagação, de como é possível um imperativo categórico, Kant unirá definitivamente o pressuposto necessário da ideia da liberdade. O filósofo quererá, para tornar válido o imperativo e justificar o uso prático da razão, que isto nos baste.
É aqui o limite máximo de toda a investigação moral, que pede determinação pelo simples fato de não deixar a razão desbaratar-se no mundo sensível ou alçar voos inúteis em espaço de conceitos transcendentes para ela vazios.

"De resto a ideia de um mundo inteligível puro, como um conjunto de todas as inteligências, ao qual pertencemos nós mesmos como seres racionais [...], continua a ser uma ideia utilizável e lícita em vista de uma crença racional, ainda que todo o saber acabe na fronteira deste mundo, para, por meio do magnífico ideal de um reino universal dos fins em si mesmos (dos seres racionais), ao qual podemos pertencer como membros logo que nos conduzamos cuidadosamente segundo máximas da liberdade como se elas fossem leis da natureza, produzir em nós um vivo interesse pela lei moral." (KANT, 2002, p.116).

À razão cabe demonstrar as possibilidades do agir humano. Mas ela seguirá incansável na busca de um “incondicional-necessário”, que deverá admitir sem contudo poder torná-lo concebível a si mesma. Esta soberana e nobilíssima imperatriz que vimos exaltada pela pena kantiana, também aqui é por ele chamada ao conhecimento quase constrangedor de seus próprios limites no uso especulativo ou prático. Destarte, não poderia findar de outro jeito a Fundamentação:

"nós não concebemos, na verdade, a necessidade prática incondicionada do imperativo moral, mas concebemos, no entanto, a sua inconcebibilidade, e isto é tudo o que, com justiça, se pode exigir de uma filosofia que aspira a atingir, nos princípios, os limites da razão humana." (KANT, 2002, p.117).

O que dizer depois disso?


Fim de O REINO DOS FINS, O IMPERATIVO CATEGÓRICO E A LIBERDADE.
In: “A Razão, o homem e um Reino dos fins na Fundamentação da metafísica dos costumes de Immanuel Kant” – Antonio Fabiano
E-mail: seridoano@gmail.com
www.antoniofabiano.blogspot.com
* Próximo artigo: CONCLUSÕES e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
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Um comentário:

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia 2. 5ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1999.

    ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia 7. 4ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000.

    AGUSTIN, San. Obras de San Agustin - Tomo II - Las Confesiones (Texto castellano y latino). Madrid: La Editorial Católica S.A., 1946.

    AQUINATIS, S. Thomae. Summa Theologiae II - Prima Secundae. 3º ed. Madrid: La Editorial Católica, S.A., MCMLXII.

    ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. (Tradução da Edunb – Editora Universidade de Brasília). São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1996.

    BÍBLIA TRADUÇÃO ECUMÊNICA (TEB). São Paulo: Edições Loyola, 1994.

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