domingo, 2 de outubro de 2011

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA – entrevistado por Antonio Fabiano




ANTONIO FABIANO: Muitos gênios se encontram no mesmo Affonso Romano de Sant’Anna: o jornalista influente, o teórico, o crítico, o ensaísta, o articulador cultural, o professor, o militante político, o cronista, o poeta etc. No mesmo escritor, a prodigiosa capacidade de ser muito bom em cada uma dessas coisas. Seu público é vastíssimo, no Brasil e também no exterior. Pergunto: na constelação de homens que é o nosso mesmo Affonso Romano de Sant’Anna, qual lugar ocupa o ‘exclusivamente poeta’?

ARS: Tirando suas amabilidades, a poesia pervaza tudo o que faço. Está na estrutura de alguns ensaios, está nas crônicas. Ser poeta é uma forma verbal de articular o real e a fantasia. Aliás, já disse várias vezes que o real é apenas a parte mais visível da fantasia.
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ANTONIO FABIANO: Roberto Drummond chegou a dizer em entrevista, certa vez, que o poeta que há em Affonso Romano de Sant’Anna deveria assassinar os outros criadores que coexistem nele, para o poeta prevalecer e nos dar a expressão máxima da melhor poesia de que é herdeiro. Ele considerou imperdoável seu desperdiçar-se nos outros criadores. O que acha disso?

ARS: Ele sacou as coisas. Acho até que foi por causa dele que levei QUE PAÍS E ESTE? para ser publicado pelo Jornal do Brasil em 1980. Claro que eu me expandi em outros gêneros. Por necessidade, compulsão também. A poesia é devoradora . Às vezes ela até mete medo. É possessiva. Aliás, toda forma de arte é possessiva. É como o amor. Ou então, é como o domador que tem que ficar na jaula com o chicote e o banquinho manobrando a fera sem se deixar devorar por ela.
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ANTONIO FABIANO: Seu grande livro de poesia, “Que país é este?” (1980), lançado ainda durante a ditadura militar, foi reeditado há pouco pela Rocco, no ensejo da celebração dos trinta anos de sua impactante primeira publicação. Não é comum vermos tanta agitação em torno de uma obra que nasceu antes mesmo da maioria de seus atuais leitores. E, no entanto, o público jovem saudou e leu isso com o entusiasmo e o espanto dos que o leram há trinta anos. A que se deve a perturbadora atualidade de “Que país é este?”, e o que nos diz pessoalmente o pai da obra, três décadas depois?

ARS: Esse livro tem me surpreendido muito. Nessa reedição pelos 30 anos encontrei pessoas que, nascidas depois da ditadura se debruçavam sobre os versos. Alguns amigos me disseram que esse poema teve um papel importante no processo de abertura. A poesia tem esses mistérios. Esse poema está em várias antologias e foi traduzido para várias línguas. Na semana passada no interior do Paraná, um grupo de atores/estudantes apresentou o poema antes de minha conferência. Uma das atrizes me confessou que cresceu com o poema, que o falava desde a adolescência. No mais, a questão QUE PAÍS É ESTE? é universal.
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ANTONIO FABIANO: Um livro que exige fôlego é o teu notável e também ousado “O Enigma Vazio” (2008). É denso e faz uma interessantíssima análise dos impasses da arte e da crítica de nosso tempo, através de posições firmes e bem fundamentadas, vasto conhecimento de causa etc. Como sintetizaria o fenômeno das artes na modernidade e na chamada pós-modernidade?

ARS: Se você ler o livro de poemas que acabou de sair SÍSIFO DESCE A MONTANHA vai encontrar a reverberação de certas ponderações lá. Ter vivido muitas experiências, ter ido a todos os museus importantes do mundo, ter convivido com artistas, ter participado dos movimentos de vanguarda e deles tomado uma distância tática, me deu a tranquilidade para escrever aquele livro. O interessante é que não apareceu ninguém para rebater minhas teses. Sei que dá trabalho ler algo assim. Passei a vida inteira atormentado com isso que atormenta tanta gente e parece que equacionei a questão dentro de uma ótica transdisciplinar. A arte contemporânea só pode ser entendida amplamente por instrumentos transdisciplinares. A estética só, não dá conta.
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ANTONIO FABIANO: Também a literatura vem sofrendo grandes transformações. Uma delas é o que se dá por meio da revolução tecnológica, que nem sempre é vista com bons olhos pela maioria dos escritores. Há uma banalização das letras em nosso tempo? A boa literatura está ameaçada?

ARS: São as duas coisas. Todo mundo pode ser autor, mas nem todo mundo quer ser leitor. Aí complica. Foi boa a democratização da internet, dos blogs, etc. Mas nem todo mundo que escreve é escritor, alguns são redatores, outros apenas expõem suas emoções. Literatura vai além da emoção.
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ANTONIO FABIANO: Em que mais diferem as atuais gerações de escritores, das gerações passadas? Que vantagens e desvantagens têm os escritores de hoje, em relação aqueles que já são clássicos?

ARS: Pertenço à geração dos escritores viajantes, aqueles que a partir dos anos 70 vararam o Brasil de ponta a ponta enquanto as gerações anteriores eram sedentárias. Já porque não havia meios de transporte, o país era outro, já porque eram funcionários públicos que ficavam no fim do dia nas portas das livrarias papeando. E sobre o advento do Ipad, computadores tenho escrito várias coisas, sobretudo o ensaio: O LEITOR, CADÊ O LEITOR? Que o Estadão deve publicar.
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ANTONIO FABIANO: Em sua opinião há atualmente o despontar de nomes promissores, das novas gerações, que de fato permanecerão? Pode-se pensar ainda em um cânon sagrado da nossa literatura? Ou as novas leis do mercado editorial já não nos dão certeza disso?

ARS: Você já reparou que nunca perguntam a um médico, quais são os novos médicos promissores, quais os novos engenheiros, dentistas? Seria interessante saber porque aos artistas se faz essa pergunta. Para responder eu teria que fazer uma longa pesquisa. Recebo dezenas, centenas de livros, hoje centenas de blogs. Há uma disseminação, dispersão, o que torna ainda mais difícil lhe responder. E as respostas restritivas correm sempre o risco de acabar formando uma “panelinha”: em alguns casos, existe por aí, algo que tenho até mencionado, que se parece com formação de “quadrilha” – grupinho defendendo seus interesses criminosamente.
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ANTONIO FABIANO: É difícil ser escritor ‘brasileiro’? Há incentivo de divulgação da nossa literatura, alguma política de difusão da mesma?

ARS: Hoje há mecanismos de incentivo. Na Biblioteca Nacional criamos bolsas para tradutores e para autores jovens. Hoje há oficinas literárias no país, algumas até pela internet. Os escritores estão viajando mais pelo país. Há muitas feiras do livro. Claro que há instituições como a Fagga, que organiza feiras e insiste em não pagar aos autores (eu não participo de coisas deles, já denunciei essa exploração). Mas a coisa mais importante é o surgimento dos “mediadores” ou “agentes de leitura” sobre o que tenho escrito constantemente.
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ANTONIO FABIANO: Poderia falar a respeito da sua experiência à frente da Biblioteca Nacional, um dos mais importantes acervos do mundo? Como vê os atuais programas de leitura em nosso país?

ARS: Sugiro a leitura de LER O MUNDO. Ali conto o que foi essa experiência, narro coisas para se entender a luta de uma geração pela leitura e pelo livro. No programa VIVA LEITURA (veja no Google), há mais de 10 mil projetos de leitura. Agora enquanto respondo suas perguntas, estou num avião, vindo de Natal onde falei para centenas de professores do programa Prazer de Ler, acabo de ler no jornal O Povo uma matéria sobre os agentes de leitura no Ceará. As coisas estão se mexendo.
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ANTONIO FABIANO: O que pensa do fenômeno da influência na obra de todo grande escritor?

ARS: Haroldo Bloom escreve sobre a “ansiedade da influência”. Todo autor é um comensal de autores anteriores. Alguns são parasitas puros. A pós-modernidade vive de parasitagem fazendo apologia do plágio, da copia, etc. Outros tentam inventar a roda. Dizia Valery: o leão é a soma dos cordeiros assimilados.
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ANTONIO FABIANO: Quem te instigou a ser poeta? Como descobriu que o fenômeno da poesia não era apenas uma coisa da adolescência? Alguém particularmente te inspirou? De quem Affonso Romano de Sant’Anna recebeu as mais marcantes influências?

ARS: Acho que tudo começou pelo fascínio da linguagem poética da Bíblia. Minha família era metodista, eu era predestinado a ser pastor, cheguei a pregar em vários lugares, mesmo adolescente. Numa crônica de LER O MUNDO falo sobre o valor/sentido dessa linguagem poética dentro das religiões e da literatura.
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ANTONIO FABIANO: Alguma vez pensou em desistir? Já experimentou o fracasso como escritor?

ARS: Todo escritor, todo artista às vezes acha que a fonte secou, há momentos de (aparente) esterilidade. É quando alguma coisa nova pode estar se armando. Clarice [Lispector] dizia que a estória de todo homem é a estória de seu fracasso, fracasso através do qual... E trato disto em SÍSIFO DESCE A MONTANHA, por isto, aliás, a epígrafe de Clarice quando ela diz que nossa verdadeira tarefa é “deseroizar-se”.
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ANTONIO FABIANO: Qual a grande convicção do amigo Affonso Romano de Sant’Anna?

ARS: Convicção? Não sei. Estou sempre tentando ver as coisas por vários lados ao mesmo tempo, assim você tem que variar seus pontos de vista, suas convicções, caso contrário perderá o fenômeno em sua totalidade, ficará com experiência muito parcial.
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ANTONIO FABIANO: Como Affonso Romano de Sant’Anna regeria o seu “Ministério dos Sonhos”?

ARS: Na verdade vivo dentro desse Ministério. É preciso sonhar para que o real se realize. Até os animais sonham. Como disse num poema, existe uma engenharia dos sonhos, uma arte de sonhar. Mas há que domar as alucinações, tirar delas o lado positivo. Há que saber a diferença entre o neurótico e o psicótico.
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ANTONIO FABIANO: O poeta considera-se uma pessoa feliz?

ARS: Tem aquele poema de Maiakovsky em que considera que em algum lugar do mundo, no Brasil, certamente, existe um homem feliz. Felicidade é uma palavra perigosa. Você sabia que em várias universidades existe curso de “felicidade”? Economistas estão escrevendo sobre isto. Alguns países querem medir a cota de felicidade dos cidadãos. O que existe, ao contrário, é a busca. Somos movidos pelo desejo, e o desejo exige novas conquistas e realizações.
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ANTONIO FABIANO: Poderia nos dizer algo mais de seu novíssimo livro de poemas “Sísifo desce a montanha” (2011)?

ARS: Prefiro que outros o digam, habitem por mim esses textos.
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ANTONIO FABIANO: A esta altura da vida, com sucesso e reconhecimento, com uma carreira literária bem delineada e seu grande nome escrito no cânon das melhores letras de nossa língua, como o poeta maduro – ao olhar para trás e vislumbrando ainda um futuro – vê seu próprio itinerário?

ARS: Estou como Sísifo, descendo a montanha, só que do outro lado. Já subi o que me foi dado subir, agora é descer com a pedra no ombro. E essa pedra até me parece leve... É estranho, mas é assim.
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ANTONIO FABIANO: Sobre o que pretende escrever, que ainda não escreveu?

ARS: Tenho vários livros engatilhados.
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ANTONIO FABIANO: Que palavra daria a este mendigo que o interpela e tanto admira?

ARS: Você é um mendigo rico, porque é generoso, sempre aberto à vida e à poesia. Que a poesia te abençoe!
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ANTONIO FABIANO: Pode deixar aos leitores do blog um dos novos versos? Esta é a pérola com que encerramos a conversa...


ARS: "ERGUER A CABEÇA ACIMA DO REBANHO"

Erguer a cabeça acima do rebanho
é um risco
que alguns insolentes correm.

Mais fácil e costumeiro
seria olhar para as gramíneas
como a habitudinária manada.

Mas alguns erguem a cabeça
olham em torno
e percebem de onde vem o lobo.

O rebanho depende de um olhar.


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AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA & ANTONIO FABIANO
Outubro de 2011
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

4 comentários:

  1. Querido amigo,
    Fantástica entrevista.

    Fellipe da Silva Toledo

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  2. Papo legal! Gosto muito do Affonso. Parabéns! E obrigado pela entrevista!

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  3. Olá, Frei Fabiano. Faço minhas as palavras dos leitores acima, linda, linda por demais esta entrevista. Parabéns!! (até chorei)

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